Lázaro Piunti. A carrocinha! (Lembranças de menino).
Puxada pela mula Morena, a Carrocinha feita de madeira de lei, cor cinza desbotada, varais pintados de preto, era conduzida pelo seu Chico.
Na boleia com ele, seu Afrânio, o homem do laço. Sem aviso a prefeitura mandava a Carrocinha passar nas vilas de ruas cobertas de pó na seca ou embarreadas na chuvarada. Só as ruas centrais eram calçadas. De paralelepípedos.
A carrocinha surgiu na esquina do Bairro da Estação e os vira-latas latiram. Enturmados. Ficou fácil para o seu Afrânio que, em laçadas certeiras, apanhava cachorro a esmo, prendendo-os na gaiola de arame liso na parte de traz da carrocinha.
Era 1959, eu tinha 12 anos, viera do sítio fazia pouco tempo. Só percebi a dimensão da desgraça quando o seu Afrânio laçou o pequeno Lulu. Meu cãozinho, pelagem branca e patinhas negras foi jogado sem cuidado na gaiola grande, onde uns sete ou oito infelizes uivavam assustados.
A Carrocinha seguiu pelos lados da Estação Sorocabana e uns moleques explicaram que a Prefeitura enviava a Carrocinha, seu Chico e o laçador Afrânio juntos, para a captura de cachorro solto na rua.
Transportados ao Matadouro, se o dono não retirasse o animal em três dias abatiam a bicharada a pauladas. Faziam sabão das carcaças. Era o comentário.
Chorando falei ao meu pai, quando ele chegou à tarde. Na manhã seguinte fomos juntos ao matadouro municipal. Tristinho, lá estava meu Lulu. A pelagem branca encardida, as patinhas sujas de imundície.
No cercado, uns 40 ou 50 cachorros latiam e brigavam esfomeados. Havia água numa tina velha, onde os pequenos não conseguiam beber. Meu pai falou com o magarefe Joaquim Prado, especialista em matar bois de corte com marretadas na cabeça.
Barbosa, seu colega, era o homem das facadas nos cachaços. Porcos e vacas, esquartejados, eram vendidos nos açougues.
Meu pai pagou a multa, uns vinte cruzeiros, acho. Com esses cobres daria folgado, disse meu pai, pra comprar uma batelada de sorvete de copinho, meia dúzia de pés de moleques e não sei quantas Marias-moles, no Bar Guaraú ou no armazém do Brás Faião.
Com o Lulu no colo voltamos pra casa. Na véspera eu tinha chorado em desespero. Agora, as lágrimas eram novas. De alegria. Meu pai, calado, seguia a meu lado.
Muitos anos depois eu soube quanto fora duro para ele arrumar a grana e pagar a multa imbecil.
Minha mãe me fez jurar por Deus não deixar nunca mais o Lulu sair na rua. Fiquei pensando: um dia, sei lá quando, meteria fogo na maldita Carrocinha, soltaria a Morena no pasto e seu Chico e o seu Afrânio que arrumassem outro serviço.
Lázaro Piunti. -