Raquel Naveira
Tenho uma veia fluminense. Meus avós paternos moravam em Macaé, no Rio de Janeiro. Na sala da casa de minha tia havia um canto especial reservado para a exposição da cadeira que pertencera ao Duque de Caxias. Uma cadeira longa como um divã, de madeira roliça e palhinha original, com algumas pequenas roturas. Com essa cadeira ele viajara para a Europa em missões de especialização militar e seu ajudante de ordens a colocara no convés do navio. Ninguém podia tocar aquela cadeira, era como se ela estivesse no centro do mundo. Quem se sentasse cometeria uma espécie de crime de lesa-majestade, pois ali havia a presença contínua do Duque, com sua autoridade de Comandante Supremo e Pacificador. Eu o imaginava esticado, de uniforme azul, o sabre de prata à cinta, observando as nuvens, enquanto águias abriam as asas, quando ele se movia. Naquela cadeira, a figura fantasmagórica de Caxias se separava do resto dos humanos, marcando sua superioridade, sabedoria e força. E num raro momento de entrega e descanso da fadiga.
Como aquela cadeira com sua aura aristocrata chegara à casa de minha tia? Longa história. Meu avô foi um moço pobre, filho de professor poeta, que educava a prole de famílias burguesas em suas residências. Pela falta de recursos, não conseguiu estudar engenharia, seu sonho. Mas era um homem dedicado, perseverante no trabalho. Esforçado e inteligente, tornou-se tesoureiro e administrador da Usina de Quissamã. Essa usina tinha sido o Engenho Central do Brasil, o mais importante da América do Sul, produzindo açúcar e aguardente entre chaminés, moendas, turbinas, prensas de espuma, geradores e caldeiras. Havia locomotivas para transporte de cargas e passageiros. Sua primeira moagem fora acompanhada de perto por D. Pedro II e pela imperatriz Teresa Cristina. Seus donos eram netos do Barão de Araruama e um deles, o Visconde de Uraí, era genro do duque de Caxias. “Araruama” era uma lagoa sobrevoada por araras multicores de uma das regiões mais ricas e prósperas do país. Pois bem, minha tia, a mais velha dos oito filhos do meu avô, casou-se com um descendente do tal Visconde. Recebeu como lembrança de um dos outrora luxuosos solares de Quissamã, a cadeira do Duque de Caxias.
Quissamã me marcou com suas fazendas centenárias, alamedas de palmeiras, os móveis rústicos, as camas com dossel e mosqueteiro. Ao redor de tudo, impregnado nos ares, o cheiro acre do vinhoto e o melado da cana-de-açúcar. As praias selvagens coalhadas de gaivotas. Os folguedos e corridas com os primos à beira mar. Aquela cadeira, presente de uma nobreza decadente, boiava agora como uma flor de lótus, na sala de minha tia.
O Duque de Caxias foi um dos mais ilustres militares e estadistas do Império. Sua história se cruzou novamente com a minha quando resolvi, sul-mato-grossense que sou, escrever um romanceiro sobre a Guerra do Paraguai intitulado Guerra entre Irmãos. Um romanceiro narrando em versos esse conflito armado, tendo de um lado o Paraguai e de outro a Tríplice Aliança: Brasil, Argentina e Uruguai. Guerra sangrenta que durou cinco anos, entre 1864 e 1870, deixando um saldo de mais de 450 mil homens mortos, epidemias, fomes e atraso para os países envolvidos. Apresento Caxias como “Filho Querido da Vitória”, “Homem-Dever”, “Diretor da Guerra”, figura que fazia os soldados tremerem de respeito e de emoção. Era velho, mas montava como um jovem e sua voz soava mais alta que o troar dos canhões, o espocar das granadas e os gemidos dos feridos. Encontrou o acampamento, “Paso de la Pátria”, uma verdadeira Babilônia fervilhante, cheia de bares, bordéis, barbeiros, casas de jogos e soldados doentes, fragilizados, com Cólera Morbo, vírus maligno espalhado por aquela Sodoma. Caxias dominou a ira, controlou-se, reorganizou as tropas, preparou manobras: o contorno das trincheiras, a “Marcha do Flanco”, o reconhecimento feito por balões. Depois da batalha de Itororó e da campanha final, a Dezembrada, fase de vitórias com as batalhas de Avaí e de Lomas Valentinas, Caxias conduz o exército à ocupação de Assunção, capital paraguaia, num janeiro verde. A cidade estava deserta, mergulhada em musgo, bolor, umidade, mato, galhos, cipós, trepadeiras e poças d’água. O verde das furnas verdes, do azinhavre e do silêncio de selva retorcida.
Caxias regressa com a saúde minada, os olhos secos. Na Corte, ninguém o acolhe, nem o imperador a quem sempre servira. A grisalha Marquesa o esperava numa sege, que atravessou o Rio de Janeiro, num trote lento, entre os lampiões apagados.
Nunca me sentei naquela cadeira, na casa de minha tia. Nem tinha esse direito. Era a cadeira do Duque de Caxias.