A Jangada do Medusa é um quadro do pintor francês Géricault exposto no Museu do Louvre. Obra impressionante: homens amontoados em forma de pirâmide sobre uma embarcação tosca, a vela enfunada, as ondas movimentando o mar, corpos decepados, seres emaciados como figuras de cera e, a um canto, um machado sangrento e um uniforme vermelho e azul abandonado, símbolo do colapso militar e político da França, após a queda de Napoleão. No contorno dramático, recortado contra um céu cinzento, um braço projeta-se para o infinito. Há emoção nos rostos e gestos dos sobreviventes, dos que subiram do abismo do desespero ao ápice da fé, ao verem uma pequena mancha no horizonte enorme da tela. Era o Argus, navio que os resgatou, aproximando-se.
Há uma história por trás do quadro: no verão de 1816, uma fragata, a Medusa, naufragou na costa da África, quando levava soldados para o Senegal, colônia francesa. O incompetente capitão entrou num bote, deixando os passageiros, que considerava seus inferiores sociais, entregues à própria sorte. Centenas de homens e uma mulher construíram uma jangada e ficaram à deriva no oceano por treze dias. Apenas quinze sobreviveram nessas terríveis circunstâncias e relataram casos de canibalismo e loucura. O fato chocou a nação. O quadro trouxe a arte para a polêmica área do protesto, da manifestação política. Misto de arte e realidade, embora nunca a pintura pudesse fazer justiça ao horror e à angústia dos homens na jangada.
Assistindo a um vídeo chocante de refugiados espremidos numa balsa de borracha, no exato instante em que vários se afogaram nas águas do Mediterrâneo, lembrei-me da Jangada do Medusa. De como tudo se repete no tempo e com tintas muito mais fortes do que poderíamos imaginar. A vastidão salgada transformada num imenso cemitério calcinado de ossos humanos, boiando como restos de conchas e corais.
Filas de refugiados buscam entrar na Europa. Chegam castigados pelos conflitos, pela pobreza, pelas guerras civis, pelos levantes populares, pelos terroristas, pelos grupos radicais, pela fome, pela seca, pelas perseguições. Arriscam-se em travessias perigosas, em barcas superlotadas, controladas por traficantes. São sírios, afegãos, eritreus, somalis, nigerianos. Pedir asilo é um direito humano. Os países deveriam se unir numa operação de livramento. Não ajudar é desumano, indefensável, é içar uma ponte levadiça enquanto milhares morrem no fosso que rodeia as muralhas de nossos castelos. Mesmo que tenhamos receio, que os consideremos estranhos, com intenções desconhecidas, a solidariedade, essa forma de amor, lançaria fora o medo.
E navegando da África em direção ao Atlântico, encontramos ainda sob a pele de espuma do mar, o rastro dos navios negreiros, verdadeiras tumbas, cargueiros que transportaram escravos por séculos. Caixões jogados às águas, com negros empilhados, amarrados por correntes, tratados como animais, feras acuadas, panteras famintas. Os olhos chispando de raiva e revolta. Quando o esquife balançava, era vômito por todo lado, sujeira, brasas, gemidos, gritos, carnes putrefatas. Pela proa e pela popa corriam as sentinelas da Coroa guardando o ouro e as riquezas. A cobiça devorava seus fígados e almas como abutres. Lá vinham as barcas com a bandeira brasileira hasteada durante o dia e o brilho dos tocheiros à noite. Tão atuais os versos indignados do poeta Castro Alves: “Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, se é loucura ou se é verdade tanto horror perante os céus?”.
É crítica a situação mundial de refúgio. Para a jangada do Medusa, a visão de um diminuto navio trouxe esperança. E agora, sobrevoando a vastidão dos mares, de que nave, de que helicóptero, de que coração altruísta descerá a corda da salvação?
Crédito Jornal Horizonte MS - (Foto Capa: Cristiana Carneiro)