Slide

Mundo guarani: raízes entrelaçadas - Silvio Barini Pinto - agosto, 2024

 livro mundo guarani 018ab

Já sabemos que enraizamentos não se fazem apenas na vertical. Fala-se, atualmente, em raízes que se espalham alhures formando entrelaçamentos fundamentais para os complexos sistemas de produção da vida. Discretas, silenciosas e subterraneamente, raízes distintas formam redes de colaboração cooperativa sem sacrificar as diferenças. E mais, realizam sinapses à semelhança de sistemas neurais para encontrar soluções para problemas que as afligem. E mais ainda, elas podem migrar e deslocar florestas(1). Portanto, enraizamentos não têm necessariamente a ver com fixidez nem exclusivismo.

Esse modo sistêmico de olhar a constituição da vida em geral e a produção de subjetividades, em particular, parece profícuo e apropriado para pensar as raízes expostas em Mundo Guarani, de Raquel Naveira.

O livro pode ser lido como belo ensaio literário em que a autora revisita suas raízes culturais de origem pantaneira, das bordas de Brasil/Paraguai, a despeito de divisões geopolíticas. Raízes, assim no plural, ensejam pertencimentos variados, combinados num crochê vivo carregado de possibilidades.

A erudição de Raquel aplicada à prosa tem, nesse livro assim como em suas crônicas, o poder de instigar interesses variados nos leitores, nutrindo-os com referências ora literárias ora historiográficas e filosóficas (ela produz verdadeiros hipertextos, repletos de links).

Sem qualquer servidão a fronteiras de gêneros literários, a poesia brinca de pula sela com a prosa e o relato tem, por vezes, ares de causos narrados.

“Alma da fronteira”, no subtítulo do livro, é recurso cifrado para enunciar esse irredentismo: almas não são aprisionáveis por categorias, territórios, nomenclaturas ou qualquer outro cercadinho. Elas frequentam é o entre das coisas.

A encomenda de Manoel de Barros a Guimarães Rosa, revelada no livro, para que o escritor mineiro visitante olhasse para a região de maneira a enxergar o singular, o discreto onde se dá a vida, é assumida e levada a efeito pela autora. Ela nos coloca frente à pulsação local nos tempos idos. E exibindo paixão.

O livro recorre a repertório acumulado, mas, sobretudo, às lembranças para expressar experiências. E a memória, como bem sabemos, é rio que se desdobra em afluentes, que se transmuta em alagados, finge sumir para logo após surgir caudaloso novamente acolá, onde parecia improvável.

Assim também flui a narrativa “pantaneira” de Mundo Guarani: meândrica e caprichosa como os cursos d’água.

Prosadora cultivada pelo tio-avô, Pila, Raquel Naveira percorre fontes e rememorações como quem fila um álbum de fotografias. Pausa num e noutro instantâneo para contar aquilo que a imagem não revela sozinha. O exercício de recordação e o ofício de contador(a) de causos são plenos de volteios. Importa mais o sensível que a seriação óbvia.

A lembrança fixada na imagem de um barquinho que, entre uma Bela Vista (Brasil) e outra (Bela Vista do Paraguai), transportava, a menina de outrora ao lado da avó, “com sua sombrinha estampada e aquele ar de quem usava perfume francês”, é emblemática de certa circularidade cultural presente na narrativa.

Afoitamente, alguma historiografia poderia enxergar nessa imagem tão somente a atração da aristocracia europeizada pelo universo exótico de povos originários, cujos odores, culinária e compreensão de mundo são distintos.

Entretanto, a imagem vem acompanhada das impressões sensíveis da criança que está ao lado da avó, essa menina que se faz “bugrinha“ ao misturar-se aos primos brasiguaios. Que se interessa pelo guarani, língua que a circunda. Que se impacta com a precariedade e a pobreza no país vizinho e se inquieta com as “mulheres vestidas de negro, como em eterno luto”. Sensibiliza-se a ponto de pensar ouvir sussurros dos mortos daquele odioso conflito havido um século antes nas barrancas do rio atravessado: guerra do Paraguai – sobre a qual teve notícia desde cedo e que a faz sentir tristeza e vergonha da situação a que foi reduzido o país vizinho.

Talvez por isso, menina crescida vê-se comprometida a informar seus leitores sobre o massacre histórico daquela população protagonizado pelo exército brasileiro, no XIX. Foram 600 mil mortes. Guaranis entre 12 e 50 anos foram liquidados quase à extinção e boa parte de brasileiros, soldados negros, sem treinamento e sob a ilusão de alforria da sua condição de escravizados também tombaram. Resultado: desse lado do Apa também ocorreu uma chacina, independente da vitória militar. Faltou quem se enlutasse por esses também.

Acenos feitos à história, a noção de cartografia é sentimental. Línguas, sotaques, musicalidades, paletas de cores urbanas e comportamentos misturam-se nas recordações e na formação multicultural de Naveira. Que dizer do encanto pelas cantorias, polcas e guarânias embaladas pelas cordas de aço do violão de Helena Meirelles em parceria com Gregório na harpa paraguaia e Zito na sanfona?

Trata-se da arte da mistura, sem importar o lado do rio em que se está. Aliás, o nome desse rio de transição já é um palíndromo sugestivo. De trás para frente ou o contrário ele continua APA.

Memória é terreno fértil para a saudade e vice-versa. A leitura de Mundo Guarani nos faz nostálgicos daquilo que nem vivemos senão na leitura. A prosa mnemônica de Mundo Guarani enseja essa sensação de saudade pela empatia envolvida no jogo entre leitor e obra.

Certamente, não nos escapa que somos mais levados a registrar quando expostos a perdas iminentes. Leio Mundo Guarani em paralelo aos jornais que trazem estatísticas assustadoramente crescentes de incêndios descontrolados no Pantanal, fotos de animais carbonizados e de outros tentando a sobrevida fora de seus habitats. Fico a sentir saudade angustiada do Pantanal das letras de Raquel Naveira.

Mobilizado por essa leitura, tenho a esperança de que os emaranhados de raízes e fungos – os rizomas – do universo subterrâneo daquela região consigam regenerar a vegetação de superfície; cultivo o desejo de que os animais que consigam escapar das tragédias promovidas pelo homem se reproduzam novamente e de que tamanduás, seriemas, jaguatiricas, jiboias, jaguaretês, jacarés, macacos, tuiuiús, araras azuis, urutaus e panambis e uma infinidade de outros vivos voltem a frequentar a floresta verdejante, os banhados, os arroios, as cachoeiras...

Quanto aos humanos e as trocas..., ora, as trocas subsistem enquanto as diversidades não forem extintas – o que não é nada garantido. Foram as misturas que permitiram a espécie humana chegar até aqui... Para tentar preservá-la, importa ter o desejo e a virtuosidade para viver as diferenças e investigar os possíveis modos de existir nos intervalos entre o mesmo e o outro, da maneira como a escritora faz sensivelmente. Talvez isso a faça grande admiradora dos crepúsculos, espetáculos de transição por excelência... Hora do Angelus!

Livro: Mundo Guarani
Fragmentos de uma alma da fronteira.
Autora: Raquel Naveira.
São Paulo: Minotauro, 2023.

(1)Emanuele Coccia e Stefano Mancuso, filósofo e neurobiologista, respectivamente, são autores que fazem o esforço de pensar a metafísica e/ou as condições cognitivas sob o prisma da complexidade da vida vegetal.