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  • Fonte: Domingos Zamagna (*)

Nunca é ocioso recordar que estamos num mundo onde há muitas doenças dizimadoras, embora algumas facilmente curáveis; muita fome e sede ao lado de desperdícios incontáveis; várias guerras embaladas por armas terrificantes e perdulárias, que apontam para o fracasso do entendimento internacional; muitas religiões que não conseguem se aproximar umas das outras para a construção de uma humanidade mais fraterna; bolsões de analfabetismo, espaventosa falta de cultura, geradora de polarizações fratricidas; muita ganância que se sobrepõe ao trabalho realmente produtivo. Um panorama pouco alvissareiro.

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Entretanto, a cada início de ano, encontramo-nos a desejar Feliz Ano Novo e apresentar uns aos outros os bons votos, os augúrios, um convite a renovar, na saúde, prosperidade e na paz, a esperança de um melhor porvir. No meio de tantos problemas, constatamos também a generosidade, o esforço, até abundante, para a prática do bem.

Mas nesta mudança de calendário, além das carnificinas no Oriente Médio e na Ucrânia, a precariedade diplomática na Ásia, as constantes dúvidas se a África conseguirá melhores e duráveis relacionamentos, e os reveladores gestos intimidatórios de conflagração na América Latina, avultam-se sobretudo as ameaças de um dantesco colapso ambiental.

Um panorama, portanto, de um planeta em perigo crescente. São muitíssimas as indicações.

Podemos evocar um exemplo colhido da Filosofia, a fábula criada pelo dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855): um teatro pegava fogo, o palhaço grita a todos os presentes para que ajudem a apagar o incêndio, mas ninguém se mexe, divertindo-se às escâncaras, achando que tudo era encenação do espetáculo. Claro que tudo foi consumido: o teatro, os frequentadores, as casas do bairro.

Especialistas em geografia evolutiva e biogeografia mostram-nos como o colapso do mundo já aconteceu na Ilha da Páscoa, na Groenlândia, na civilização maia... O planeta já foi destruído dezesseis vezes! Se não houver mudanças lúcidas, competentes, radicais, corajosas, urgentes, poderá ser destruído mais uma vez. Mudanças que não sejam mais superficiais, que impliquem, além de tecnologias, uma cultura da busca de sentido de interdependência global e de responsabilidade universal, mudança de mentes e corações, de forma de viver, mais compartilhada e cada vez menos afeita à competitividade predatória, com um modo de produção não somente consumista. Se não levarmos a sério os limites da Terra (como no caso da escassez de água potável) não seria impensável um colapso sincronizado do sistema dos viventes. O que sobraria? Uma Ilha da Páscoa com dimensões gigantescas. Apenas retalhos de uma civilização.

Quem conhece a Bíblia sabe da história de Noé (Gn 6,5 - 9,17): iluminado pela Providência, soube discernir os sinais dos tempos e trabalhou para a salvação da biodiversidade. Mas agora não dá para salvar apenas alguns casais, como na narrativa do Gênesis: ou nos salvaremos todos, ou todos podemos perecer. Os que constroem arcas, isto é, as iniciativas que apontem direcionamentos viáveis, merecem sempre o apoio. Mas não é mais possível protelar soluções, replicar mais do mesmo. Há um sistema que precisa ser alterado, pois está gangrenado, custa crer que dele possa advir vida nova. É preciso modelos que sejam capazes de produzir subsistência para todos, sem exploração de uns pelos outros, é preciso forjar – para citar Isaías (65,17; cf. Ap 21,1; Rm 8,18-27) “novas terras e novos céus”. Um modo de viver cujos verdadeiros articuladores não sejam apenas o mercado, os sistemas financeiros, mas a economia solidária, que ultimamente os estudiosos vêm chamando de “economia de Francisco”, para um futuro, se bem que difícil, realmente promissor.

Pois, de fato, o Papa Franscisco é quem mais vem dando voz ao que muitos sentem no corpo e na alma: estamos num ponto crítico como jamais visto, estamos chegando a um ponto de não retorno para a humanidade. A solução passa por todos os agentes capazes de aprender a trabalhar pela justiça e pela paz, desde os cientistas, os diplomatas, os que têm o dom da gestão pública, os educadores, as lideranças religiosas, os velhos sábios, as insubstituíveis mães, o mundo dos valores do trabalho, os jovens audaciosos, as crianças sonhadoras, empenhados na construção de um mundo uno e diverso.

Feliz 2024, de Graça, sabedoria, alegria, justiça e paz.

 

(*) Jornalista profissional e professor de Filosofia, membro titular da cadeira nº 28 da Academia Cristã de Letras.