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  • Fonte: Raquel Naveira

NIKON D9033725 fdb7cSão Paulo ganha um toque mágico nos dias frios e chuvosos, quando mergulha na brancura úmida, que sempre caracterizou essas terras. Foi numa madrugada assim, de sete de julho de 2019, que faleceu, aos 92 anos, Paulo Lébeis Bomfim, o jornalista, o ativista cultural, o último “Príncipe dos Poetas Brasileiros”. Esse título foi outorgado pela primeira vez pela esfuziante revista Fon-Fon , que circulou de 1909 a 1958, marcando o estilo da Belle Époque, os hábitos cariocas como ir a cafés, cinemas, apreciar as artes e os jogos de futebol, ao som frenético das buzinas dos automóveis, ao poeta parnasiano Olavo Bilac. O título foi dado também aos poetas Alberto de Oliveira e Olegário Mariano. O jornal “Correio da Manhã” imitou a iniciativa e fez ascender Guilherme de Almeida. Mais tarde, a revista Brasília, através de votação, passou o título a Paulo Bomfim. Citava-se a máxima atribuída a Píndaro, poeta da Antiguidade Grega: “Os poetas são iguais aos príncipes e a glória do príncipe só existe graças aos poetas. Só se deve ser humilde perante a divindade, tal como os príncipes.”

Quem teve a alegria e o privilégio de conhecer e conviver com o poeta Paulo Bomfim, sabe, de forma natural, que ele era de fato um príncipe, um nobre, chefe do Principado da Poesia, o mais notável em talento e outras qualidades, entre seus pares. Um homem fino, alto, de maneiras polidas e aristocráticas. Seu porte era majestoso, grave e digno. Na Academia Paulista de Letras, na qual era o decano, tendo tomado posse há mais de cinquenta anos, assisti a alguns de seus pronunciamentos e declamações. Era entusiasmado, criativo, inspirado. Despertava o sentimento do belo, apontava o que havia de mais elevado e comovente nas pessoas e nas coisas, com encanto, graça, atração. Era íntegro e inteiro, na sua fala loquaz de homem consagrado à poesia, na sua capacidade de imaginação e devaneio, no seu caráter idealista. Era um verdadeiro fidalgo, que tinha nas veias o sangue dos bandeirantes paulistanos. Seus ancestrais ergueram cidades e igrejas, formaram famílias. Escreveu certa vez: “...sobre as mãos que teclam esta crônica, pousam as mãos de meu pai e de meu avô. As de meu pai empunhando a pena ou o bisturi, salvando vidas e apontando rumos; as de meu avô, mãos de semeador de civilização, de senhor de terras a perder de vista, transformadas em rosas que o sangue foi tornando rubras.”

O amor de Paulo Bomfim pela cidade de São Paulo era feito de ternura, compaixão, profundo conhecimento, arguto olhar sobre as mudanças ocorridas nas décadas de sua longa existência: a história de cada rua, de cada nome, de cada estátua, de cada prédio, tudo contava com minúcias, detalhes, memória clara de lago profundo. E sempre tinha um sorriso, um olhar azulado e inteligente, uma palavra generosa de incentivo e lealdade para com os amigos e companheiros de ofício. Lembro-me de sua alegria e gratidão, quando do lançamento do livro fotobiográfico Paulo Bomfim: Porta-Retratos, organizado pela jornalista Di Bonetti, em comemoração aos seus 90 anos. Exalava alegria e pureza, transparente como cristal.

Sua vigorosa poesia, que se firmou depois da fase heroica do Modernismo, buscou sempre uma linguagem essencial e dimensões temáticas como a metafísica, a social, a circunstancial, principalmente em relação à sua cidade. O editor Rodrigo Leal Rodrigues definiu-a como “uma permanente viagem através de si mesmo”, movido desde o início, “a nervos e emoções”. Pertenceu à chamada “geração de 45”, à qual se juntam nomes como Domingos Carvalho da Silva, Ledo Ivo, Thiago de Melo, Marcos Konder, Geraldo Vidigal e outros. Poetas com pendor para uma dicção erudita e a volta, nem sempre sistemática, a metros e formas fixas de cunho clássico como o soneto e a ode. Poetas que tendiam à pesquisa formal e concebiam poesia como arte da palavra, em contraste com abordagens que valorizavam o material extra-estético do texto. Poetas que reagiram a desafios históricos como a guerra fria, a bomba atômica, as lutas raciais, a corrida interplanetária, o neocapitalismo, a tecnocracia. Poetas que atingiram planos altos e complexos de integração. Poetas imagéticos, em busca de símbolos, de véus que ocultavam e, ao mesmo tempo, sugeriam sentimentos, estados da alma. Poetas que, por um lado, subestimaram o que o Modernismo trouxe de liberação e de enriquecimento cultural e, por outro, propuseram problemas importantes de poesia, com soluções mais conscientes do que nos tempos agitados do irracionalismo de 22.

A poesia de Paulo Bomfim é mesmo cheia de imagens e símbolos. Pinço alguns: há uma “nuvem que penetra a carne da manhã”, uma “cascata de pedras onde imprime seus passos de espuma”, uma parede de mundo, onde a janela se abre para “paisagens, naufrágios, cantigas e viagens”; uma campina onde dragões mastigam fogos verdes”. E de advertências para um momento de  vilezas e explorações como o nosso: “Ai daqueles que brincam com a esperança de um povo. Ai dos indiferentes, dos corruptos, dos mentirosos que fabricam a violência, a trama do medo e usam o dinheiro para prostituir, humilhar, deformar, traficar a feira dos seus mortos, enxovalhar as tradições. Ai dos que traem compromissos com o presente e o futuro, que se entregam sem lutar. Ai dos que morrem vivos.” No meio das avenidas neuróticas, das máquinas e dos roubos, o poeta, que é feito de tudo e nada, faz um apelo: “_ Mas deixai-me poetar!” Sim, poetar, até o fim, apesar de tudo.

Fazia frio naquela manhã de julho em São Paulo. Os amigos se reuniram no salão do Tribunal de Justiça para se despedirem do poeta. Por um instante, parece que vi o vulto do Príncipe, no seu terno de lã escura, empunhando um guarda-chuva negro, atravessar a rua e recostar sob um antigo lampião de luz chapada na neblina.

*RAQUEL NAVEIRA é escritora, professora universitária, crítica literária, Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, autora de vários livros de poemas, ensaios, romance e infantojuvenis. Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (onde exerce atualmente o cargo de vice-presidente), à Academia Cristã de Letras de São Paulo e ao PEN Clube do Brasil.