Páscoa é um vocábulo que provém das línguas hebraica (Pessah) e aramaica (Pasha), deverbais de uma raiz que significa “passar, saltar”.
Originalmente a celebração pascal era uma festa agrícola, pastoril, quando os camponeses hebreus, na primavera do hemisfério norte, ofereciam a Deus os primeiros produtos de suas colheitas e rebanhos.
A partir desse substrato, por volta do séc. XII aC, a Páscoa começou a ser festejada também como memorial do acontecimento fundador da história do povo hebreu: o Êxodo, ou melhor, “os êxodos”, tanto o do Egito – que acabou se tornando paradigmático – quanto os dos vários sistemas de opressão do Oriente Médio. Os relatos sobre esses eventos, que inclusive podem ser controlados pela ciência histórica e pela arqueologia, são muito marcantes nos livros bíblicos. Em ambos os casos os hebreus galgaram um estágio de vida de impressionante qualidade para a época, pois conseguiram passar / saltar de uma situação de opressão (alienação) para uma vida de liberdade (inclusão).
Essa realidade vital recebeu uma expressão religiosa, concebida como aliança entre Deus e o povo, cujo resultado prático foi a constituição de uma solidariedade tribal, isto é, uma nação fraterna onde não havia espaço para a exclusão. Tudo era polarizado pela dignidade das pessoas: havia convivência e trabalho para todos, sem nenhum dos gravames que estorvam a vida concreta dos povos, tais como monarquia absoluta, exércitos violentos, burocracia estéril, impostos escorchantes etc. Essa situação persistiu pelo menos até a época salomônica (século IX aC).
Com o advento do cristianismo, oriundo do próprio judaísmo, como se lê nos textos neo-testamentários, a Páscoa recebeu novo significado. Convictos de que Jesus de Nazaré era o Messias longamente esperado pelo povo hebreu, os cristãos começaram a celebrar a Páscoa também como passagem de um estado de morte (assassinato de Jesus) para um estado de vida (ressurreição do Cristo). Com efeito, Jesus – assassinado em torno do ano 30 da nossa era, no tempo do imperador romano Tibério – depois que o seu túmulo foi encontrado vazio (cf Mt 28,6), a fé na sua ressurreição fez com que seus discípulos o reconhecessem como Filho de Deus, e o proclamassem como “Senhor” (Kýrios, em grego; Dominus, em latim, as línguas mais difundidas no Mediterrâneo), pois nele residia todo o poder de seu Pai, identificado com o Yhwh veterotestamentário. A partir do século IV os cristãos começaram a celebrar a Páscoa no primeiro domingo depois da lua cheia do equinócio da primavera (muito raramente coincidem as datas pascais entre judeus e cristãos. A Páscoa cristã, neste 2020, realiza-se no dia 12/abril (sempre num domingo). A Pessah judaica em 2020 é celebrada entre 8 e 16 de abril.
A Páscoa tem, enfim, além do seu significado estritamente religioso, um embasamento antropológico – e, por isso, ético –, no sentido que a aspiração a um estado de vida livre pertence à mais íntima estrutura de cada ser humano e de cada comunidade humana, podendo ser perfeitamente compreensível e vivenciado até mesmo por quem não se considera religioso.
Por isso, os ideais da Páscoa judaico-cristã não são mero privilégio confessional; eles podem ser vistos como patrimônio comum de toda a humanidade, uma vez que o coração de todo ser humano é polarizado pelo bem, pela verdade, pela justiça e pelo amor/solidariedade. Cada membro da comunidade humana aspira, de fato, à passagem de um estado de opressão e morte para um estado de fruição de liberdade e vida feliz (cf Gl 5,1; Mt 5,1-11).
Neste ano de pandemia, que aflige toda a humanidade, teremos de celebrar a Páscoa, com a ajuda dos meios de comunicação, na intimidade de nossos lares, sem a frequência aos templos. Uma razão a mais para nos recordarmos que somos todos “templos do Espírito Santo” (2Cor 6.19), reforçar a convicção de que existe uma Igreja doméstica, da presença real, amorosa, de Jesus Cristo nos nossos corações e nos nossos lares. Assumamos essa provação, que há de ser superada, com a graça de Deus, num novo mundo de mais fraternidade, crendo no valor salvífico de todo sacrifício, como – na forte expressão do apóstolo Paulo – “o que faltou às tribulações do Cristo” (Col 1, 24).
Unidos na esperança, Feliz Páscoa, de alegria e paz evangélicas!
(*) Domingos Zamagna é jornalista e professor universitário em São Paulo.