A Quaresma começa na Quarta-feira de Cinzas (26/fevereiro/2020) e termina na Quinta-feira Santa (9/abril), antes da celebração da Santa Ceia do Senhor, que dá início ao Tríduo Pascal. Relembra os quarenta anos ou quarenta dias referentes à caminhada dos hebreus pelo deserto, na busca da Terra Prometida, ou os dias de recolhimento de Jesus, também no deserto, que antecederam sua vida pública. Quarenta dias que são celebrados liturgicamente pelos cristãos como preparação para a Páscoa, a festa da libertação, da passagem do pecado para a graça, da morte para a vida.
Na Quaresma os fiéis são convocados pela Igreja para certas práticas que vêm dando bons resultados há quase dois mil anos. São práticas oriundas do Judaísmo (não nos esqueçamos que Jesus era judeu e conhecia as tradições de seu povo). Quais práticas? O jejum, a esmola e a oração.
De modo apressado, muita gente poderá afirmar que são práticas arcaicas, anacrônicas, totalmente superadas. Fazem dessas práticas uma leitura puramente religiosa, sabe-se lá exatamente o que muita gente entende por “religião”. Há poucas semanas, num importante programa de TV, um grupo de jornalistas que entrevistava um conhecido colega, autor de livros bem conceituados, ficaram boquiabertos quando dele ouviram que era cristão e católico... Mas como alguém antenado com o nosso tempo, culto, experiente, poderia ter... religião?
As práticas do judeu-cristianismo do jejum, da esmola e da oração podem ser lidas também de modo antropológico.
O jejum é uma privação voluntária de coisas, produtos da terra, tais como alguns alimentos. Mas com que intenção? Para pura mortificação? Não, pois a intenção sugerida pela Igreja é para despertar nas pessoas, positivamente, o sentido das coisas, e valorizá-las. Os alimentos têm sentido, os animais têm sentido, os bosques e florestas têm sentido, as águas, lagos, rios e oceanos têm sentido, a natureza não só tem sentido, como é preciso valorizá-la, defendê-la, preservá-la. O jejum pode suscitar em nós a redescoberta do valor do que nos circunda, uma atitude que poderíamos chamar de ecológica.
A esmola já nos projeta para além das coisas, pois ela visa mitigar o sofrimento de um ser humano, igual a mim e a você, que precisa de mim e de você para sobreviver. A esmola serve para despertar em nós o valor da fraternidade (a relação entre os seres humanos é a de compartilhamento e não a de competição, muito menos de subserviência). Nós só conseguimos viver e ser felizes se soubermos nos relacionar com o próximo como irmão.
É claro que hoje podemos praticar a esmola de maneira bem dinâmica (para além da mera distribuição de uns “trocados”), associando-nos a instituições que sabem ajudar as pessoas, os grupos e os povos de modo honesto e eficiente.
A oração é o coroamento desse dinamismo que começou com a redescoberta do valor na natureza e amadureceu com a redescoberta do valor do nosso irmão. Tudo o que existe é criação, é resultado do amor do Criador que nos quis partícipes de sua vida. Por essa razão precisamos nos abrir para essa dimensão transcendente, essa realidade perfeita da qual tudo depende e para a qual todos tendemos, que os cristãos chamam de Deus, mas a quem muitos outros povos e culturas atribuem nomes diferentes; uma realidade tão grande que ultrapassa nosso discernimento e diante da qual muitas vezes podemos apenas nos silenciar e apenas venerar, adorar.
O Novo Testamento nos ensinou que essa realidade, que a tradição invocou como “Pai”, enviou seu Filho, na pessoa e na missão de Jesus de Nazaré (para os cristãos o Messias aguardado durante séculos pelo povo judeu) e. pela força do Espírito de Amor, se tornou um de nós, da nossa raça, viveu as nossas alegrias e esperanças, até ser combatido e assassinado pelas forças que se opunham à sua pregação de liberdade, fraternidade, solidariedade, realidades que força alguma jamais poderá sopitar, a ponto de termos a convicção de que elas permanecem vivas, pela ressurreição de Cristo, nos corações de um povo que se quer sempre novo, de uma nova Aliança e que se renova a cada Quaresma.
(*) Jornalista profissional e professor de Filosofia.