"O meu mandamento é este: Amem uns aos outros como eu amo vocês. O maior amor que alguém pode ter por seus amigos é dar a vida por eles". (João 15:12)
Neste fim de século, se nos perguntássemos qual foi o feito mais comovente e mais sublime da Medicina deste e de todos os séculos, não hesitaríamos em dizer que foi o milagre dos transplantes. Desde que Eva nasceu de uma “clonagem” sagrada de uma costela de Adão, originando assim, a Humanidade; nada se pode comparar a este fato médico. Hoje os transplantes não são mais uma curiosidade de laboratório nem fatos heroicos isolados. Transformaram-se, na maior parte dos países, numa rotina da cirurgia, que salva, anualmente, milhares de vidas preciosas. Somente nos Estados Unidos, país forte em estatística, com cerca de 300 milhões de habitantes, fazem-se 18.000 transplantes por ano em 270 centros especializados. Até março último, segundo dados da UNOS (United Network for Organ Sharing), 68.371 pacientes encontravam-se na lista de espera, 44.546 aguardando por um rim, 14.847 aguardando um fígado, 4.147 por um coração, 3591 por um pulmão, 2214 por um transplante combinado de rim e pâncreas, 882 por um pâncreas, 152 por ilhotas pancreáticas, 126 por intestinos, sem contar os milhares aguardando por córneas para recuperar a visão, pele, ossos, medula óssea e outros tecidos. Nesse mesmo país, cerca de 13 pessoas morrem diariamente, aguardando um transplante e, com muita tristeza, somos informados que pelo menos 5.000 pessoas morreram naquele país tão organizado durante o ano 2000, porque um determinado órgão não chegou a tempo ! A cada 16 minutos mais um nome é adicionado à lista de espera do National Organ Transplant Organization. Poderemos extrapolar esses dados numéricos para o Brasil, com nossos quase 200 milhões de habitantes? Sem dúvida, guardadas as proporções, e considerando-se, sobretudo, o estado atual de nosso sistema de saúde, tão desigual do Oiapoque ao Chui. Segundo a ABTO, a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, até dezembro de 1999 dispúnhamos de 200 Centros ativos transplantadores.
Entretanto, e este agora é o grande problema, transplantes não podem ser efetuados sem doadores. Heróis são difíceis de achar – doadores vivos, doadores potenciais mantidos vivos em UTI’s em respiradores artificiais, e famílias esclarecidas que acabaram de sofrer a tragédia da perda de um ente querido. É preciso uma alta dose de altruísmo, solidariedade e generosa caridade cristã para transferir a vida, seja a própria, por nossa vontade, após nos despirmos das prisões da carne, ou consentir que um parente venha a compartilhar o dom da vida com alguém da lista nacional, após um infortúnio.
Até fins da década de sessenta e princípios dos anos setenta, a morte física era sempre inexorável: um trauma craniano, uma parada cardíaca ou respiratória levavam sempre a um desfecho fatal. Não havia Terapias Intensivas ou respiradores mecânicos, que hoje conseguem manter a circulação e a respiração por períodos prolongados.
Um médico austríaco, Peter Safar, criou um novo capítulo em Medicina, o da Ressuscitação, tornando os intensivistas os piores inimigos da morte e os melhores amigos da vida, e hoje forte candidato ao prêmio Nobel, demonstrando que a morte é um processo (que leva tempo para ocorrer) e não simplesmente um momento, como muitos pensam. Essa tecnologia, consegue hoje manter-nos vivos, forçando-nos, inclusive a mudar nossos antigos conceitos de morte, que desde tempos imemoriais eram definidos apenas pela parada da respiração e dos batimentos cardíacos.Graças a ela, cerca de 50% das mortes súbitas são revertidas pela ressuscitação cardio-pulmonar e mais de 100 mil vidas são salvas por ano por esse método.
Em recente Congresso Internacional, realizado em Cuba, em fins de fevereiro último, 40 países e suas delegações de médicos, neurocirurgiões, fisiologistas, teólogos e filósofos se reuniram já pela terceira vez, a fim de redefinir os modernos conceitos de coma e da morte do cérebro. Concluíram que a morte é um acontecimento que toca a toda a comunidade, do ponto de vista sociológico, médico, político e religioso, não sendo monopólio de nenhum destes, pois esbarra no sagrado. A morte, assim como o nascimento, é um efeito secundário da vida. Ela é o risco que corremos por estarmos vivos, e ela ocorre ao mesmo tempo em que acontece a morte do cérebro – a chamada “morte humanística”, em que alguns sinais vitais são mantidos por drogas e respiradores; uma pessoa morta num corpo vivo, onde sua humanidade, caracterizada pela consciência não estão mais presentes – somente a aparência de pessoa está presente. A unidade do organismo se dissolve com a morte global do cérebro, que geralmente prenuncia uma assistolia inevitável,em horas ou dias.O cérebro é o único instrumento ou órgão que nos separa da condição humana. Sem ele somos quase vegetais, sem ele sofremos uma decapitação biológica, como um guilhotinado que ainda apresenta batimentos cardíacos por algum tempo. A morte é uma coisa natural, e todos os dias são uma preparação para ela. Madre Teresa dizia que “A morte nada mais é do que uma volta para Ele, para onde Ele está, num lugar a que todos pertencemos e devemos nos reencontrar. Morrer é como voltar para casa; não é o fim, apenas o começo,pois a morte é uma continuação da vida, e o Céu é o nosso lar. Este é o significado da vida eterna. Na morte nós apenas deixamos de lado o nosso corpo – nosso coração e nossa alma viverão para sempre”. Toda religião prega uma eternidade, uma outra vida. Os que temem a morte são os que acreditam que o fim definitivo é aqui neste mundo, do qual ninguém sairá vivo. Poucos acreditam que não somos o nosso corpo e que a morte é apenas uma mudança. A famosa doutora Elizabeth Kubler-Ross, que entrevistou milhares de pacientes terminais – cerca de 20 mil – afirma que o corpo é como um casulo que aprisiona a borboleta, um útero grávido que aprisiona a criança. Para ela, morrer é como deixar nossas cascas, da mesma maneira que uma linda borboleta deixa seu casulo para a percepção de uma nova vida num momento glorioso. Ela afirmava também que dizer ao mundo que a morte não existe foi sua grande missão, e que a morte é uma espécie de formatura na escola da vida, sendo ela apenas uma transição de uma vida para outra existência, onde não há mais dor, angústia ou sofrimento. O nascimento e a morte são experiências semelhantes: cada uma delas é o começo de uma nova viagem, sendo a morte parte do ciclo natural da vida, sua parte mais importante.Entretanto, a vida do homem não é outra coisa senão a vida de seu cérebro, como dizia nosso amigo padre Charbonneau: “um cérebro vivo dá ao homem sua identidade essencial; um cérebro morto nos deixa frente a um corpo que perdeu sua identidade humana e é apenas uma coisa, vestígio de pessoa, tirando do homem sua humanidade…não somos apenas uma combinação de vísceras. Toda vida humana é cerebral, e depende de uma organização sistêmica, que se for interrompida por um acidente qualquer que provoque a descerebralização, deixa de existir, tornando-se apenas uma máquina em decomposição. Se toda vida humana só pode ser cerebral, o mesmo ocorre com a morte. Esta se produzirá com a morte do cérebro.Quando o cérebro entra na letargia que se origina pela lesão irrecuperável dos neurônios, a vida acaba e é a morte que triunfa. O resto é divagação filosófica. Estabeleceu-se um elo tão forte entre a vida humana e a vida cerebral, o qual não pode mais ser rompido. Pretender ignorar isso seria resignar-se a ficar por fora do assunto em relação ao estágio atual dos conhecimentos científicos existentes. É pois ao nível do cérebro que se deve situar a morte. O homem despojado da força de seu cérebro é apenas um cadáver… É nesse parentesco cerebral que a vida e a morte revelam sua trágica unidade". Contudo, somente um esforço científico constante, como o que tem sido realizado nas últimas décadas, depois do advento do milagre dos transplantes, tem permitido estabelecer os critérios extremamente rígidos utilizado hoje em dia pela Medicina, para determinar o momento exato da morte com precisão e segurança. Poderá, então, a Medicina de hoje, declarar com certeza, que um indivíduo está morto, mesmo que apresente ainda alguns sinais exteriores de vida, conhecida a hora em que todo o cérebro para de funcionar, transformando-se numa pasta informe, que é o atestado da subtração da vida do homem e de seu status de pessoa. Os exames clínicos e o exame neurológico ainda são soberanos, assim como a apnéia, ou parada respiratória, conhecida desde a mais remota antiguidade. Nos últimos anos, muitos e importantes testes médicos e laboratoriais vêm se desenvolvendo, uns para a medida do fluxo, da perfusão e da circulação cerebral, tais como a angiografia cerebral, o Doppler transcraniano, que mede o fluxo cerebral pelo ultrassom, os potenciais evocados, o eletrencefalograma e a retinografia, testes neurofisiológicos que determinam a morte do tronco encefálico, onde estão localizados os centros respiratórios e cardíacos, e o SPECT (Single Photon Emission Computed Tomography ), realizado à beira do leito, com isótopos radiativos, talvez o melhor teste para o futuro, que demonstra em cores, a ausência completa de circulação cerebral – o chamado “crânio vazio”, onde uma compacta sombra negra diagnostica a ausência do cérebro dentro da caixa craniana. Estes e muitos outros são chamados de testes confirmatórios da morte cerebral. Eles vêm demonstrar que, depois de certas alterações fisiológicas irreversíveis do ponto de vista médico, o corpo DESEJA morrer, pois se torna instável e incapaz de manter seus processos vitais básicos, morrendo uma “segunda morte “ com a parada definitiva do coração e a putrefação que começa a se instalar minutos depois. Estas, infelizmente, são verdades duras, que todos preferiríamos ignorar, como o avestruz que atola a cabeça na terra para não tomar conhecimento dos fatos a seu derredor, mas, a Medicina trouxe um lado sobre-humano e sublime à fealdade da morte, tornando-a nobre e generosa : o milagre das doações e o prodígio dos transplantes.
O milagre dos transplantes foi-nos concedido neste século como um summum bonum , um dom sublime das modernas conquistas médicas e científicas. Ele surgiu como um dom do Criador a nós pobres mortais, demonstrando que a Medicina existe para o homem e não o homem para a Medicina, e neste ponto nossa Medicina se entrecruza com a filosofia moral, com uma nova ética e com uma renovada teologia,pois o médico só pode existir em função de sua relação com o doente. Os transplantes, ligados intimamente que estão,com o ato supremo das doações, surgiram como que para testar nossas virtudes de solidariedade humana, nosso altruísmo, nossa generosidade, nossa piedade, nossa compaixão, nossa filantropia, nossa benevolência, nossa bondade, nosso amor ao próximo, nosso espírito humanitário, nossa indulgência, nossa excelência moral, nossa grandeza de alma, nossa misericórdia, nosso espírito de socorro,amparo e auxílio e, sobretudo a virtude mais decantada nos Evangelhos: o amor e a caridade: é gratificante observar que num dos séculos mais materialistas que a humanidade já atravessou, tantos milhares de famílias tenham compreendido a nobreza da doação de órgãos a ponto de permitir que milhares de vidas venham a ser salvas anualmente em função de seu heroico desprendimento. Eles perceberam que não estamos sozinhos neste Universo, e que nesta Terra formamos uma única família humana, onde uns precisam se importar com os outros. Não é o fato de constar a palavra DOADOR ou NÃO-DOADOR em nossa carteira de identidade, que nos permite incluirmos ou não como parte dessa família humana. Na Argentina, por exemplo, apenas uma singela e delicada flor impressa, perdendo uma de suas pétalas, serve como amável mensagem de que o portador é um doador potencial. As carteiras sem flor pertencem aos que não acreditam que a vida pode ser reciclável, que não pertencemos uns aos outros.
Não poderíamos concluir este artigo sem citar uma das mais belas parábolas do Novo Testamento, que muito nos tem comovido durante nossas lides diárias com doadores e transplantados.Trata-se do discurso escatológico sobre o Juízo Final, encontrado em Mateus 25: 31 , que diz: “ Quando o Filho do Homem vier em sua glória, e todos os anjos com Ele… serão reunidas em sua presença todas as nações e Ele separará os homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos…Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde benditos de meu Pai, e recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo. Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber.Era forasteiro e me recebestes em suas casas.Estava nu e me vestiram. Estava doente e cuidaram de mim.Estava na prisão e foram me visitar. .. Em verdade vos digo que quando vocês fizeram isto ao mais humilde de meus irmãos, foi a mim que fizeram.” Creio não ser necessário lembrar aos leitores o que Ele disse aos que se encontravam à sua esquerda…os cabritos. Peço, entretanto, permissão para parafrasear um pouco de toda essa sabedoria em relação à questão atual dos transplantes. Talvez hoje pudéssemos dizer:
Estava cego e me deram suas córneas.
Meu coração estava doente e me deram o seu, antes que o meu parasse.
Estava numa máquina de diálise e me deram o seu rim antes que eu morresse.
Estava em coma hepático e me doaram o seu fígado que me acordou para o mundo.
Morria eu asfixiado e você me deu seus pulmões e voltei a respirar de novo.
Estávamos todos condenados à morte, mas voltamos à vida.
Eis a Regra de Ouro: um corpo salvou muitas vidas.
Esse, a nosso ver, é o verdadeiro significado dos transplantes hoje: permitem que nós, pobres médicos, sejamos meros instrumentos tentando imitar, e de forma sublime, o milagre da ressurreição, procurando – depois da morte - continuar a oferecer a Vida, revivendo a parábola: “Estava doente e cuidaram de mim!" pois, somente o ato heroico de sacrificar a própria vida por outrem irá nos proporcionar a verdadeira experiência de ter estado vivo.
Enquanto nossos laboratórios de pesquisas não resolverem o problema dos xenotransplantes, que nos permitirão receber órgãos de outros animais, ou o problema da clonagem de órgãos específicos, que por sinal já estão sendo elaborados em alguns centros, experimentalmente, a doação espontânea continuará constituindo um dos atos mais sublimes como apanágio da espécie humana – um momento que justifica toda uma vida – um grande ato de amor, que fará tudo o mais parecer passageiro.
Tem sido primoroso o trabalho das OPO ( as Organizações de Procura de Órgãos ), que desde 1997 foram organizadas pela Secretaria de Saúde, juntamente com a criação da lista única de receptores, democratizando o sistema de doações. São dezenas de jovens enfermeiros e enfermeiras, orgulhosos de seu extenuante trabalho de correr os Hospitais de todo o Estado à procura de potenciais doadores. É reconfortante e inspirador observar-se a tarefa desses jovens idealistas junto às famílias inconsoláveis, que acabaram de perder seus entes queridos. São eles que “ousam perguntar aquela temida pergunta que ninguém gostaria de ouvir !" .
Fico assombrado, muitas vezes, quando constato que a influência da mídia, em relação aos transplantes, é maior que o da religião, podendo ser utilizada como instrumento de esclarecimento às doações de órgãos, com notícias bem elaboradas, informações sobre novas leis de doações,etc. Vemos a resistência e as recusas às doações elevarem-se até 60 % depois de campanhas de esclarecimento ao público, como o famigerado”efeito Camila “, por exemplo,que despertou e motivou os doadores de medula. Milhares deixarão de morrer como conseqüência. Há tempos vimos procurando um termo que definisse alguém que procure interferir ou impedir a realização de uma doação que salvará muitas vidas, e encontramos essa definição : um monstro ! seja ele um médico ou um legislador.
Raul Marino Junior, é Neurocirurgião e Professor-Titular de Neurocirurgia da Divisão de Clínica Neurocirúrgica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP .