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Domingos Zamagna (*) - 31/8/2017 - 

foto biblia ef46fVárias comunidades religiosas celebram em setembro o “mês da Bíblia”. Há quem valorize essa antiga iniciativa, mas há também quem a desconheça ou permaneça indiferente e até hostil à comemoração.

O que é a Bíblia?

Dizer que é um dos textos fundantes de muitas culturas orientais e ocidentais, é verdade mas é muito pouco. Por quê?

A Bíblia foi escrita primeiramente por judeus e para judeus. Ela contém a Lei (Torah), os Profetas (Nebiim) e os Escritos (Ketuvim), que alimentam espiritualmente o Judaísmo. Este conjunto literário é chamado pelos cristãos de Velho ou Antigo Testamento (AT).

Nós sabemos que entre o Judaísmo e o Cristianismo existem vários pontos convergentes (monoteísmo, criação, justiça, amor etc.), mas existem também diferenças substanciais (Trindade, messianismo, salvação, escatologia etc.). Por isso os cristãos acolheram como Bíblia ou Sagradas Escrituras, além do AT, uma segunda parte chamada de Novo Testamento (NT). Assim como os cristãos aprendem muito com o AT, também os estudiosos judeus aprendem, cada vez mais, com o NT.

Algo precisa ficar claro: Jesus era judeu, praticou os valores da religião judaica e os cristãos o veem menos como fundador de uma nova religião e mais como quem quis levar o Judaísmo a um altíssimo grau de cumprimento, ao seu amadurecimento, à sua perfeição:

“Não vim abolir a Lei ou os Profetas, mas cumpri-los... Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito” (Mt 5, 17.48).

A Bíblia é um livro que interessa também aos samaritanos e aos muçulmanos. Seu alcance é muitíssimo vasto, pois nela encontramos: história, arqueologia, idiomas, linguística, arte, literatura, genealogias, costumes, tradições, filosofia, teologia, orações etc. Direta ou indiretamente, desde que despida de fundamentalismos, a Bíblia pode interessar a todas as pessoas. Conhecemos muitíssimos casos de pessoas que nem têm fé religiosa e leem, apreciam e são estudiosos da Bíblia. A Bíblia perde suas conotações inicialmente nacionalistas e expande-se para uma visão universal sobre o sentido da vida. Quem tem experiência do mundo da dor, da doença, das prisões do corpo e da alma, da tristeza, das limitações, certamente já testemunhou como o contato com a espiritualidade bíblica contribuiu, sem fanatismos, para a transformação da vida de muitas pessoas, reacendendo esperanças, trazendo luz e resiliência moral. Os que conhecem os ambientes saudáveis de estudos já devem ter visto como a Bíblia é capaz de fecundar e arejar a inteligência e propiciar novas descobertas existenciais.
Mas a Escritura é uma obra que, para ser bem entendida, supõe, além de alguma abertura cultural, sobretudo a fé teologal. Por quê?

Porque os que têm fé leem nela uma carta entre Deus e a humanidade; uma conversa, uma comunicação entre o céu e a terra, a partir dos problemas fundamentais que nos afligem – a nós seres humanos – na terra. Cada civilização encontra as metáforas para falar desse diálogo entre a transcendência e a imanência, entre o Criador e a criatura.

Qual é o conteúdo mais relevante desse diálogo entre amigos? Podemos resumi-lo numa expressão bem simples: trata-se de um diálogo revelador. Deus, servindo-se da linguagem humana, revela-se como comunhão de pessoas e deseja que a humanidade participe dessa comunhão. Deus se inseriu na história humana para nos revelar a pessoa e a missão de seu divino Filho, encarnado em Jesus de Nazaré. Jesus, o justo perseguido e assassinado, para a nossa salvação, deixou à comunidade dos seus discípulos – a Igreja – a força de seu Espírito para completar sua missão. Por isso, nós podemos viver, pelo amor fraterno, pelo acolhimento da Palavra de Deus, pela prática sacramental, a própria vida de amor que existe entre as Pessoas divinas (Santíssima Trindade).

E qual é o elemento fundamental, cada vez mais atual, dessa revelação? Deus se revela como Pai amoroso, clemente e misericordioso, sempre disposto a perdoar, para que nós, humanos, nos sintamos unidos pela fraternidade, banindo a segregação, a intolerância, o ódio. Para que sintamos que o sentido da vida é, na liberdade, a prática da justiça, da solidariedade, do amor misericordioso, cujas consequências são o perdão, a alegria e a paz.
Sendo assim, a Bíblia é uma insubstituível contribuição para a humanidade. Privar voluntariamente alguém de seu conhecimento é privá-lo de uma das mais ricas fontes de amadurecimento pessoal e social, de aperfeiçoamento antropológico, um dos mais significativos legados da história sobre o devido respeito à dignidade do ser humano.

(*) Professor universitário e membro d Academia Cristã de Letras