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  • Fonte: Estadão - Ruy Martins Altenfelder Silva

Ruy Altenfelder 1 09b38Amplificada e até distorcida pelo calor das turbulências, a voz das ruas se torna má conselheira tanto para uma análise mais aprofundada das manifestações que, vez por outra, abalam países, reunindo os mais variados segmentos sob a vaga bandeira de “protestos contra o que está aí”, como também para aqueles que estão no olho do furacão e se sentem compelidos a dar uma resposta imediatista às reivindicações, mesmo que não as tenham bem entendido.

No início encaradas como protesto contra o aumento das tarifas dos transportes urbanos e, em seguida, vistas como pretexto para ações de vândalos e saqueadores, logo as manifestações no nosso país, nos anos recentes, se revelaram fruto de uma generalizada insatisfação, que tem levado milhares de brasileiros às ruas, surpreendendo o Brasil e o mundo e produzindo uma multiplicidade de interpretações, que será depurada pela peneira do tempo. Os cartazes e as palavras de ordem referem-se a praticamente toda a série de mazelas e distorções que há longo tempo penalizam a população, como os protestos contra a corrupção, contra o descaso com a saúde pública, a educação, a insegurança, e por aí vai.

Enquanto especialistas e detentores dos poderes públicos se debruçam sobre os fatos e tentam compreendê-los, seria recomendável atentar para as palavras de lideranças religiosas mundiais cujo alcance vai além do 1,2 bilhão de católicos no mundo, segundo o Anuário Pontifício. À época, o então papa Bento XVI traçava um cenário preocupante, a partir da análise da atual tendência de alijar o conceito da ética da finalidade maior do esforço humano, que deveria consistir na busca da felicidade e da justiça nas relações sociais, e não somente o lucro e poder de vários tipos a qualquer preço.

Na encíclica Caridade na Verdade, Bento XVI alerta para os riscos da confusão entre fins e meios: o empresário considerará o máximo lucro na produção; o político, a consolidação do poder; o cientista, o resultado de suas pesquisas; e assim por diante. A consequência é a formação de um caldo de cultura em que vicejam incompreensões, contrariedades e injustiças, pois os fluxos do desenvolvimento (técnico, científico e econômico) se multiplicam em benefício de seus detentores, enquanto as condições de vida das populações que vivem sob tais influxos – e quase sempre na sua ignorância – permanecem imutáveis e sem assegurar efetiva possibilidade de emancipação.

O papa Francisco tem-se manifestado com frequência sobre o tema da paz: “Nunca termine o dia sem fazer a paz”; “não podemos dormir em paz enquanto os bebês morrem de fome e os idosos estão sem assistência médica”; “para mudar o mundo é preciso ser bom com aqueles que não nos podem pagar”; “o mundo nos diz que procuremos o sucesso, o poder e o dinheiro; Deus nos diz para buscar a humildade, o serviço e o amor”.

Essa preocupação não é recente no Vaticano. Numa encíclica anterior, a Populorum Progressio, lançada na Páscoa de 1967, o papa Paulo VI propunha ações estratégicas visando à universalização dos benefício do desenvolvimento e alertava que “as excessivas disparidades econômicas, sociais e culturais provocam, entre os povos, tensões e discórdias, e põe em perigo a paz”.

Neste início de século, a escalada de conflitos entre países, entre etnias, entre comunidades religiosas, entre setores da mesma sociedade encontra um fértil alimento na pobreza e nas desigualdades de todos os tipos. Para Paulo VI, a paz não se deve reduzir à ausência de guerra, fruto do equilíbrio precário das forças, mas constrói-se, dia a dia, na busca da justiça mais perfeita entre os homens. Num momento em que o movimento das ruas sinaliza para um divórcio entre as instituições e ponderáveis parcelas da população, é indispensável considerar que a visão da paz não pode prescindir da ética – hoje um valor marginalizado.

Bento XVI identifica o grande risco de a paz ser considerada mero fruto de acordos entre governos ou de iniciativas tendentes a assegurar resultados econômicos. A isso faz eco Paulo VI, que considerava os povos os autores e primeiros responsáveis pelo próprio desenvolvimento, num esforço que envolve, além dos governos, a atuação de famílias bem estruturadas e de organizações profissionais responsáveis pela tarefa educativa voltada para a formação integral das pessoas.

As palavras dos pontífices levam à reflexão e é impossível não concordar com a advertência comum a eles de que o desenvolvimento econômico e social ficaria comprometido sem o respeito à verdadeira escala de valores. Escala essa ditada pela ética, cuja prática resulta na desejável união do progresso técnico e econômico para a construção de uma sociedade mais justa e humana.

Daisaku Ikeda, presidente da Soka Gakkai Internacional, em diálogo travado com o saudoso Austregésilo de Athaide focando os direitos humanos no século 21, enfatiza a importância da educação para a paz. “O grande escritor Victor Hugo, autor predileto na minha juventude, escreveu em Os Miseráveis: o rico esplendor de uma sociedade se origina da ciência, da literatura, das belas artes e da educação. Criem os homens, criem os homens. Criar os homens para o bem do futuro – eis uma questão primordial, o ponto de partida e o ponto de chegada para tudo. Quando se ajusta o foco na educação, surgirá dali uma trilha segura para o século do humanismo e o século dos direitos humanos”. Ao que acrescentou Athaide: “Sem a instrução torna-se impossível desenvolver plenamente a personalidade humana, que constitui a mais sólida base na sociedade e objetivo da vida humana. A educação é a condição primordial para o desenvolvimento”.

O caminho da paz passa pelo desenvolvimento. Por isso mesmo, o novo nome da palavra paz é desenvolvimento.