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  • Fonte: Domingos Zamagna (*)

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Em 16 de julho de 1949, há exatos 75 anos, foi publicado no Osservatore Romano um documento da Santa Sé datado de 1/7 daquele ano.

Popularmente chamado "Decreto contra o comunismo", na verdade, não é um decreto, é um documento que responde a algumas dúvidas (Dubia, em latim, esclarecimentos sobre questões doutrinais da Igreja). Da lavra do então chamado Santo Ofício (hoje Congregação para a Doutrina da Fé), de um lado o texto reafirma a tradicional condenação da Igreja ao marxismo e ao comunismo, mas de outro lado está muito ligado ao contexto da política italiana após a II Guerra mundial. Nessa época políticos italianos católicos aceitaram uma coligação ministerial com o Partido comunista italiano. Sobretudo no gabinete presidido pelo notável deputado católico Alcide De Gasperi (1881-1954, hoje um "Servo de Deus", primeiro passo de um processo de beatificação no Catolicismo), premiê italiano entre 1945 e 1953, um dos "pais da Comunidade europeia". A Igreja acreditava ser necessário afastar o perigo dos comunistas vencerem eleições na península e se expandirem mais ainda pela Europa e pelo mundo. Daí um documento tentando marginalizar o Partido comunista e, consequentemente, favorecer a Democracia cristã, partido apoiado pelos bispos italianos. A Igreja tinha razões para temer os comunistas, já que, expandindo-se pela Europa oriental (chamada Cortina de Ferro, sob a influência da URSS) e na China, em plena Guerra Fria, implantaram ditaduras e perseguições religiosas.

Todos conheciam, dentre outros, os clamorosos casos das prisões dos Cardeais A. Stepinac (1898-1960), na Iugoslávia, e J. Mindszenty (1892-1975), na Hungria.

O documento do Santo Oficio teve aprovação do Papa Pio XII, mas ele apenas reafirmava doutrina da Igreja que vinha desde 1846, dois anos antes do Manifesto du Partido Comunista, veiculando o que Pio IX (1792-1878) designava de "nefasta doutrina". Tal doutrina, se admitida, seria a ruína completa de todos os direitos, das instituições, obviamente das propriedades e da própria sociedade. Leão XIII (1810-1903) chamou o comunismo de "peste mortal". Os Papas seguintes sempre acharam o comunismo monstruoso, que acabava sempre em ditaduras, luta de classes, violência, desrespeito à justiça e à paz.

Em 1931, pela primeira vez, Roma (Pio XI) mostrou uma tímida abertura para um "socialismo moderado", cujas ideias às vezes se aproximam dos que lutam para transformar a sociedade através de princípios cristãos.

Nesses casos a Igreja sempre recorda que a construção de uma sociedade inclusiva, que valoriza a família, o trabalho, a justiça e a paz tem origens nos Profetas da Bíblia, assumida por Jesus no Evangelho e praticada pelas primeiras comunidades cristãs. Esse, aliás, é o conteúdo da Encíclica de Leão XIII "Rerum Novarum" sobre a condição dos operários (1891), início de uma série mais explícita de documentos constituintes da chamada Doutrina Social da Igreja.

Os intérpretes do documento insistiram sempre na severidade da Igreja, a ponto de excomungar os que praticavam o comunismo.

Excomunhão é a mais grave censura imposta pela autoridade eclesiástica, levando o excomungado a uma situação de exclusão da vida no grêmio da Igreja, como a privação de participação dos Sacramentos.

O Concílio do Vaticano II (1962-1965) redesenhou o perfil da Igreja católica nas suas relações com uma sociedade secularizada, a ponto de o Papa Paulo VI dizer que o mundo não mais se dividia entre Ocidente e Oriente, direita e esquerda, mas entre o Norte (países opulentos) e o Sul (países que passam fome).

O Código de Direito Canônico de 1917 recepcionou com antecedência o conteúdo do decreto contra o comunismo, mas ele foi ab-rogado por um novo Código, promulgado em 1983 pelo Papa João Paulo II. É claro que o novo código segue a tradição canônica da Igreja no que há de mais importante, portanto reafirma a condenação das doutrinas estranhas à fé católica. Mas ele abriga uma conotação pastoral que, superando fundamentalismos jurídicos e fanatismos políticos e religiosos, proporciona uma melhor e mais prudente jurisprudência eclesiástica sob a luz da caridade evangélica. Podemos dizer que a Igreja mudou bastante, aperfeiçoou seu Direito, buscou mais humanidade em seus procedimentos.

Infelizmente ainda não se pode dizer que o comunismo tenha alterado a qualidade intrínseca de muitas de suas práticas, talvez isso nem seja possível porque equivaleria a negar sua identidade. Pelo contrário, várias nações comunistas acabaram por adotar modelos típicos do que outrora condenavam no que chegou a ser o seu antípoda, o capitalismo. A Igreja, sob este aspecto, é mais radical, e permanece crítica de ambos os modelos.

Por isso vem adotando uma postura de abertura ao diálogo, ou seja, não deixa escapar, sem temor, nenhuma oportunidade de se relacionar com qualquer ideologia atual, desde que haja perspectivas realistas e esperançosas de mais justiça e paz entre os povos, certamente prestando rigorosa atenção às metas e aos meios das ações.

(*) Jornalista profissional e Professor de Filosofia, titular da Cadeira no 28 da Academia Cristã de Letras.