No momento em que os noticiários nos mostram a situação de penúria de muitos brasileiros (desemprego, dívidas, falta de vagas em hospitais, creches, insegurança etc) nos damos conta da importância da solidariedade. As notícias que chegam do primeiro mundo não são alentadoras para os estrangeiros, com preocupantes casos de racismo, xenofobia, separação de famílias. Partes do planeta, além de famintas, já bastante banhadas em sangue, ainda sucumbem a dezenas de focos de prolongadas guerras, sendo a Síria talvez a mais conhecida. E mais uma vez surge a ameaça de guerra nuclear, com os experimentos da Coreia do Norte.
Precisaríamos recordar as tragédias cotidianas dos migrantes da África e da Ásia que buscam cruzar o Mediterrâneo para tentar a sobrevida na Europa?
Por outro lado, são também inúmeros os esforços de paz, no campo da diplomacia, das Igrejas, das ONGs, universidades etc. O Papa Francisco visitou a Colômbia, para sustentar esforços de paz duradoura, após cinquenta anos de violência.
É oportuno, é educativo, sobretudo para os jovens, recordar que no dia 10 de dezembro de 1958, no grande salão da Universidade de Oslo, o Pe. Dominique Pire (nascido Georges Charles Clement Ghislain Pire, em 10 de fevereiro de 1910, na cidade de Dinant), religioso dominicano belga, recebia o Prêmio Nobel da Paz, das mãos do rei Olavo e da princesa Astrid. Foi o primeiro Nobel da Paz concedido a um religioso. Os demais religiosos foram: Madre Teresa de Calcutá (1979), Arcebispo Desmond Tutu (1984), Dalai Lama (1989) e o Bispo Carlos Filipe Ximenes Belo (1986).
Que jovem brasileiro já ouviu falar de Dominique Pire? Aliás, será que os intelectuais brasileiros (professores, jornalistas, políticos, artistas, seminaristas) também saberão quem foi esse religioso? O que fez ele para merecer um Nobel?
Gunnar Jahn, presidente do Comitê Nobel do Parlamento norueguês, assim justificou a concessão do prêmio: “O trabalho do Pe. Pire em favor dos refugiados é uma ação empreendida para curar as feridas da guerra, para construir um feixe de luz e de amor, bem acima das vagas do colonialismo e da oposição entre raças; uma ação que favorece o desenvolvimento do espírito de fraternidade entre os homens e os povos.”
De fato, as feridas da segunda guerra mundial, abertas antes mesmo que as da guerra anterior estivessem cicatrizadas, demoravam para serem curadas. A maior catástrofe provocada pelo ser humano, envolvendo direta ou indiretamente setenta e dois países dos cinco continentes, deixou um saldo de mais de cinquenta milhões de mortos, trinta milhões de mutilados e um incontável número de lares desfeitos e refugiados.
Foi para ao menos aliviar tanto sofrimento que este simples frade, munido apenas de forças morais, a partir de 1949 entregou-se de corpo e alma ao trabalho com os refugiados e deslocados de guerra. Ele próprio e sua família tiveram de migrar para a França, quando em 1914 a Bélgica, em desrespeito à sua neutralidade, foi invadida pelas tropas alemãs, provocando em Liège a primeira batalha da Primeira Guerra Mundial. Com apenas quatro anos de idade ele soube o que é ser um refugiado. Por isso é que mais tarde fundou a “Europe du Coeur au Service du Monde” (uma associação de ajuda às famílias marginalizadas), construindo uma série de campos para refugiados, sem qualquer tipo de discriminação, coisa aliás que não chegou a ser bem vista por alguns de seus contemporâneos, numa época em que ainda pairava sobre o mundo o espírito da vindita.
Vestido com o hábito branco dos filhos de São Domingos que outrora, infelizmente, também fora símbolo de alguns inquisidores, estava ele ali, entre políticos, diplomatas, artistas, cientistas e sábios, como a testemunhar que os tempos já eram outros – sem ostentar títulos, nem mesmo algo próximo ao de “teólogo da libertação”, embora o merecesse – pois se apresentava apenas como seguidor e missionário de Jesus Nazareno, que passou sua vida construindo o bem e a paz. Agradeceu ao rei e aos noruegueses tamanha honraria, mas com humildade preferiu ver nela apenas um estímulo para prosseguir seu trabalho. Ele se sentiu investido de uma nova missão, a de trabalhar para o estabelecimento de uma paz duradoura no mundo. Num gesto concreto de solidariedade, aplicou a grande soma correspondente ao prêmio na construção de obras assistenciais: o “Village Fridtjof Nansen” e o “Village Anne Frank”, na periferia de Bruxelas. Em 1963 construirá no Paquistão, em terra muçulmana, um serviço de granjas agrícolas para fomentar o desenvolvimento dos camponeses. Ele, que fora um decidido europeísta, viu que os problemas do mundo são problemas de todos os habitantes do planeta. Mais tarde, fundará a Universidade da Paz, que existe até hoje em Namur, destinada a promover o entendimento e a concórdia entre os povos, reconhecido centro de formação para prevenção e gestão positiva de conflitos. Começou com 29 jovens; com o tempo formou dezenas de milhares de multiplicadores do diálogo, da justiça e da paz. Construirá uma rede de proteção social conhecida como “Îles de la Paix”, uma ONG para o desenvolvimento de populações rurais de países pobres, a começar pelo Bangladesh e a Índia, mas também na África e América Latina. Muitas outras iniciativas de paz foram empreendidas pelo Pe. Pire, até sua morte em Louvain, em 30 de janeiro de 1969.
Para o bem, e para o mal, o final da década de 50 foi um tempo paradigmático. Se, de um lado, tivemos a invenção da bomba de hidrogênio, a invasão da Hungria pelas tropas soviéticas, a revolução cubana, ou se foi quando começou a corrida espacial; de outro lado acabou a era stalinista, o prefeito Giorgio La Pira transformou Florença num foco de irenismo para o Mediterrâneo; foram assinados os Tratados de Roma de 1957 (constitutivos do que viria a ser a Comunidade Europeia), muitas colônias conquistaram sua independência. Sem alarde, com gestos simples, mas bem concretos, Dominique Pire mostrou-nos que a paz é um bem precioso demais para ser entregue apenas aos cuidados dos políticos e diplomatas. Cada ser humano, se for apaixonado por ela, há de se tornar um artesão da paz. Ainda no fim da década de 50, um bom exemplo a ser lembrado como síntese de um novo patamar de incentivo à convivência pacífica e solidária é a figura do Papa João XXIII, infatigável trabalhador pelo banimento da violência e pelo entendimento entre as religiões e os povos (convocou o Concílio Ecumênico em 25/1/1959) em plena época de guerra fria, inclusive legando-nos (como antes fizera Leão XIII em 1891 com a Rerum Novarum), uma das mais belas encíclicas da história da Igreja, a “Pacem in Terris” (1963).
Alguém poderia questionar: Mas essa tarefa é tipicamente dos leigos; sacerdotes ou religiosos não deveriam se imiscuir em assuntos de tal magnitude e complexidade, que envolvem economia, administração, relações internacionais etc. Em muitas dioceses, em muitos países ainda não temos uma formação de leigos preparados para essa vocação de santidade nas realidades terrestres. Mesmo porque tantas vezes as paróquias ou as dioceses não os estimulam, nem os apoiam nessa missão. Certamente muitas pessoas não pensam que devam ser sacerdotes ou religiosos para serem santos; mas ainda temos dificuldades em compreender que um político católico, um homem de negócios ou um acadêmico está chamado a levar sua fé a sua área de competência, e isso pode ser feito tanto implícita quanto explicitamente.
De fato, a complexidade técnica dos temas implicados pode ser desconcertante. Na era dos sistemas financeiros globais, por exemplo, o que podemos dizer que seja levado a sério por especialistas financeiros e ao mesmo tempo que conduza seriamente a uma ordem econômica mais justa? O medo de dizer algo que revele ignorância em temas técnicos pode fazer que as pessoas se desanimem.
Neste ponto, as universidades católicas e pontifícias precisariam ser mais ativas, pois deveriam formar muitos líderes na vida pública com a base filosófica e religiosa necessária para sustentar sua vocação e sua competência técnica, ser capazes de enfrentar problemas reais e sociais e propor soluções práticas. Os leigos, hoje, sobretudo os jovens, muitas vezes estão sendo chamados para cantar e pular diante das câmaras de algumas TVs religiosas. Tem havido mudanças substanciais do ponto de vista pastoral? Enquanto a mudança na preparação dos leigos não acontece, ou pelo menos não acontece entre nós com a necessária urgência, os sacerdotes ou religiosos que tenham competência não podem se omitir. Foi o que fez o Fr. Dominique Pire, foi o que fez o Fr. Louis-Joseph Lebret, o dominicano francês que desenvolveu o conceito da “economia humana (tão ativo no Brasil e não obstante hoje tão ignorado entre nós) entre o final da década de 40 até o advento do golpe de estado em 1964.
A figura de Dominique Pire, que pôs em prática uma doutrina social que a Igreja prega há séculos, nos estimula a um compromisso em favor dos esquecidos, os descartados pelas políticas que antepõem modelos econômicos utilitaristas que buscam o lucro a todo custo; modelos por sua vez que geram mais marginalizados de todo tipo que precisam, hoje como no pós-guerra, de um testemunho de trabalho eficiente pela dignidade, a justiça e a paz dos migrantes e refugiados. Aqui, faz-se necessário uma lucidez que pode ser resumida na busca da verdade. Noutras palavras, a doutrina social da Igreja supõe um pano de fundo que é também o compromisso com a verdade. Não podemos nos lançar no relativismo. Pois se não há nada que podemos considerar como verdadeiro sobre a pessoa humana, para além das diferenças históricas e culturais, então o conceito de direitos humanos fica ameaçado, diluído, desfigurado.
Mais que isso. Hoje se fala muito em nova evangelização. A ideia fundamental da doutrina social da Igreja é uma parte integral do ministério da evangelização, como vemos no número 66 do Compêndio da Doutrina Social, e ainda tem de ser entendido totalmente por muitos. Enquanto alguns já estão convencidos, outros ainda não captaram sua importância.
Nas vésperas do sexagésimo aniversário da premiação do Pe. Pire com o Nobel da Paz, todos os que se preocupam com a nova evangelização, com a construção de um mundo novo, de justiça, solidariedade e paz, cumprimos o alegre dever de evocar o seu luminoso exemplo e, mesmo na singeleza desta rápida Memória, homenageá-lo com profunda gratidão.
Bibliografia sumária:
ERNOTTE, Roger. Dominiue Pire. La voix des hommes sans voix. Namur: Fidelité, 1995.
PIRE, Dominique. Bâtir la paix. Verviers: Gérard & Cie., 1966.
VAN DAMME, Guido. Le Père Pire, Prix Nobel de la Paix 1958. Namur/Paris: Fidelité/Racine, 2008.
Domingos Zagamna(*) Palestra extraída de gravador, pronunciada no Congresso Internacional sobre Doutrina Social da Igreja na Universidade Salesiana (São Paulo).