Certamente o momento atual representa a pior crise pela qual passou e passa o mundo na sua história recente. Compará-la com a última Guerra Mundial não atinge muita gente, pois quem viveu e se recorda desse terrível conflito deve ter pelo menos uns oitenta anos.
As reflexões sobre o fato ainda são produzidas à queima-roupa, mas elas se impõem, pois ninguém consegue ficar três meses em confinamento, procurando a sobrevivência, sem se questionar sobre o presente e o futuro. E quem tem fé, questiona-se ainda sobre o significado de tamanho sofrimento. A pergunta mais percuciente é sobre o próprio significado e conveniência da fé em situações semelhantes. Ou ela seria um luxo, um supérfluo?
Ora, se a fé não for capaz de nos dar consolo, ânimo, fortaleza, esperança neste momento, ela perde a sua legitimidade. Não podemos privatizar a fé a ponto de reservá-la somente para certos momentos, e ocultá-la em outros. Um renomado jornalista, de fé judaica, Alberto Dines, costumava dizer que da soma das omissões da imprensa, podemos elaborar a lista completa dos reais problemas pelos quais passa o povo. Ele criticava a imprensa no tempo da censura, da ditadura, que nem sempre teve coragem de estar ao lado de quem mais necessitava. Podemos fazer uma analogia com a fé e a pandemia: se jogarmos as dores do momento para fora do âmbito da fé, criaríamos um fosso intransponível na antropologia religiosa, e estaríamos proclamando que nossa fé é nada mais que um palavreado fútil, uma ideologia, apenas um alarido.
O momento provoca incertezas. E a fé pode gerar certeza. Não uma certeza no sentido da adivinhação, da evidência imediata. Pois, na linguagem da Carta aos Hebreus, “a fé uma posse antecipada do que se espera, um meio de demonstrar as realidades que não se veem” (11,1). Se dissermos que se trata de um ato racional, é porque o Novo Testamento usa a linguagem da analogia, sobretudo quando fala das “razões da esperança” (1Pd 3,15). Pedro falava no tempo das perseguições, dores semelhantes às que vivemos hoje por causa da infecção do vírus. Uma variante do versículo citado da Carta aos Hebreus fala da fé como “segurança das realidades esperadas [o céu?], convicção das realidades não desejadas [o inferno?]”. As interpretações podem ser várias, mas a insistência é colocada na fonte da qual brotam a fé e a perseverança, como aliás sugerem os exemplos da hagiografia do Antigo Testamento: “Foi pela fé que...” expressão retomada dezessete vezes na sequência da citação.
Num mundo que escapa ao nosso controle (epidemias, calamidades, tsunamis, terremotos etc.), a comunidade dos que têm fé lança o seu olhar para horizontes que vão além do que se vê, “resistindo, como se visse o invisível” (Hb 11,27). Há algo que nos espera, há algo que nos chama, há uma realidade que nos seduz, que nos atrai (“Quando eu for levantado, atrairei tudo a mim”, Jo 12,32).
A provação atual nos conduz ao extremo das nossas forças, chega ao ponto do sacrifício, da nossa própria morte ou de quem amamos. Mas pela fé sabemos que viver não é apenas existir. Há um sacrifício que nos conduz para além da finitude pessoal. E, mesmo sofrendo terrivelmente, a reflexão sobre essa possibilidade pode nos abrir para a visão que relativize o presente, o tempo, a história, com tudo o que julgamos valioso e imprescindível. Há uma redução de tudo: fica somente o amor, que é o verdadeiro nome de Deus. Santa Teresa de Ávila nos socorre:
“Nada te turbe, nada te espante,
todo se passa.
Diós non se muda,
la paciencia todo lo alcanza.
Quién a Diós tiene
Nada le falta:
Solo Diós basta!”
E, para nos recordar que a fé nos dá a certeza da esperança e do amor, vínculo da perfeição, tanto no presente quanto no futuro, tanto na vida quanto na morte, quinze séculos antes de Teresa, ensinou-nos o Apóstolo Paulo na Carta aos Romanos que “a criação passa por dores de parto”(8,22):
“Que diremos, pois? Se Deus é por nós, quem será contra nós? (...) Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada? Como está escrito: Por amor de ti somos entregues à morte todo o dia; Somos reputados como ovelhas para o matadouro. Mas em todas estas coisas somos mais do que vencedores, por aquele que nos amou. Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Jesus Cristo, nosso Senhor” (8,31-39).
(*) Jornalista profissional, professor universitário e membro da Academia Cristã de Letras.