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  • Fonte: Domingos Zamagna

Muitas vezes entabulamos conversas com algumas pessoas e ouvimos delas: “Isso é assunto de religião, é assunto privado, melhor nem falar disso.” Certamente já ouvimos também: “Imagine se assunto de religião pode interessar na vida política, econômica, social...”

domingos zamagna b9df8Na Europa, nos Estados Unidos e em algumas outras partes do mundo desenvolvido, os meios de comunicação conhecem especialistas em religião. No Brasil há grandes e conhecidos jornais que tratam os temas religiosos, geralmente escolhendo temas muito periféricos, quase anedóticos, nas editorias de Política. Dificilmente se dão conta de tal anacronismo. Seria como se tratassem os assuntos políticos na editoria de Polícia.

É verdade - como disse Santo Agostinho - que Deus é mais íntimo do que nosso próprio íntimo, mas isso não autoriza ninguém a dizer que Deus é tema unicamente privado. Pelo contrário, é uma grandeza que deve ser compartilhada.

Os intelectuais não deveriam ter receio de se aproximar dos temas religiosos. Encontrarão o espaço adequado para seu nível de trabalho. Se a Igreja reserva para os iniciantes os conhecimentos adequados oriundos de sua atividade catequética (ex: crianças, adolescentes), todavia ela sabe orientar a percepção e o discurso sobre Deus num nível também adequado para o mundo universitário (jovens, adultos, profissionais da educação, ciência, arte, comunicação), isto é, no nível da racionalidade, desde que não identifiquemos racionalidade simplesmente com a formalidade científica (alguém duvida que também a razão tem limites?). Há um grandíssimo número de conteúdos que podem ser abordados para e por quem, superando preconceitos e acomodações, se interesse por itinerários possíveis na complexidade da vida, dos sentidos, das ultimidades.

Tudo o que diz respeito à Fé cristã se insere numa tradição cultural, nutre-se dela, adapta-se a ela com critérios seguros, eventualmente a corrige, outras vezes até mesmo a engrandece. Basta que nos recordemos que a própria Bíblia dialogou com povos pagãos, ora comungando com seus valores, ora se distanciando de seus erros ou insuficiências. Quem já estudou a literatura dos primeiros cristãos conheceu a inserção cultural de autores como Justino, Clemente, Orígenes, Agostinho, Jerônimo... ao mesmo tempo em que elaboraram uma exposição sobre a percepção subjetiva da transcendência, a partir de noções oriundas sobretudo do Judaísmo e do Helenismo. Foi longo, mas bastante frutífero o caminho que a Teologia desenvolveu para traduzir para um horizonte bem ampliado a sede de racionalidade aspirada pela “Oikouméne” (o mundo habitado), num comprometimento com a busca de sentido e o descarte do absurdo.

Mas a Teologia não é uma quimera, uma fantasia. Não é um mero palavreado, um alarido. Ela é práxica. Uma das características fundamentais da Fé cristã é que o Lógos se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14). Impossível pensar a Fé cristã sem esta dimensão de encarnação, de inserção na vida, na presença no mundo. Em palavras mais claras: Não se pode conceber a ação do Deus encarnado fora do espaço do mundo habitado, por ele criado e sempre recriado. Para quem pertencer ao mundo, para quem não se alienar do mundo, falar de Deus deve ser algo natural, merece atenção, respeito, interlocução. Claro que este discurso – sem excluir a sabedoria dos simples – passa pelo caminho da competência, da argumentação, da coerência. Um compromisso tão práxico que não pode abandonar a vida, o criado, o meio ambiente, a comunidade humana, suas relações, o cidadão, a política, a economia, os gêneros, o trabalho, a ciência, o lazer, a cultura, a solidariedade, o amor, a justiça, a paz.

A reflexão teológica e a prática cristãs não são objeto de intimismos, de valores encapsulados, ciosamente guardados para si: são realidades públicas (política, economia, cultura, sociedade), inseridas no que o latim chamou de “saeculum” (a realidade do mundo). O que requer fidelidade (que não significa repetição de fórmulas), mas também inovação, ousadia.

Ousar até quando ?

Ouse, enquanto puder (“Quantum potes, tantum aude”, “Sapere aude”, são adágios caros à tradição cristã). Um convite à valentia, ao atrevimento do saber, à busca dos tesouros que a Palavra de Deus deixou para nosso desfrute e transmissão.