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  • Fonte: Domingos Zamagna

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Um aluno de Filosofia, cristão, me disse que tinha dificuldade de entender a frase do evangelho que serve de título para esta reflexão, com a qual tentei ajudá-lo.

Nesta passagem Jesus responde a um jovem (poderia ser um de nós) de um modo que pode parecer duro demais. “Segue-me, e deixa que os mortos enterrem seus mortos”.

Tecnicamente, trata-se de um antinômio (uma norma que parece ser a negação de outra).

Um de seus seguidores, querendo se engajar mais e mais no projeto do Mestre, recorda um preceito do Antigo Testamento (cf. Tb 4,3-4;14,12-13a; o pano de fundo do lógion é Jr 16,5-7) segundo o qual deve-se dar sepultura aos falecidos da família (“seus mortos”. em grego heauón necroús). Nada mais natural, justíssimo. 

Jesus não é um burocrata da religião que se contenta em repetir fórmulas, protocolos, rituais, rubricas, preceitos. Para os seus seguidores, quer “uma justiça maior que a dos fariseus e publicanos” (Mt 5,20). Ele  quer a perfeição de seus discípulos (“Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito” cf. Mt 5,48). Por isso ensina ao jovem a dar um passo a mais, a buscar um sentido mais profundo, mais autêntico para a vida. Quem se apega ao que já não mais existe, ao que está morto, ao que já não representa tanto numa existência... é preciso encontrar o sentido da autenticidade e da urgência da missão.

Jesus não é desumano, não desmerece o cuidado com os falecidos de uma família, a dor, o pranto, a saudade e a memória que devemos cultivar. Mas não devemos nos vergar a uma cultura de morte, já que ninguém escapa à condição mortal, um “corpo de morte”, como ensinou São Paulo (Rm 7,24, sóma tou thanátou). O seguidor de Jesus deve estar voltado para uma “cultura de vida”.

Na nossa vida podemos nos prender a fatos, faltas, procedimentos, paixões, feridas, remorsos, escrúpulos, preconceitos, que ainda não conseguimos superar. Ficamos como que encarcerados e ruminando tudo o que se foi, dominados por um passado sombrio, talvez até desastroso, quando o certo será nos abrirmos para um horizonte evangelicamente esperançoso. Mais tarde, uns cinquenta anos após a morte de Jesus, um rabino convertido ao cristianismo, o Apóstolo Paulo, atualizará esse ensinamento do evangelho, quando ensina:
“Se alguém está em Cristo, ele é uma nova criatura. O que era antigo passou, chegou o novo” (2Cor 5,17). Ou seja, a identidade do cristão é a de uma nova critura. Nossa vidas passada deve deixar de nos culpabilizar, não podemos nos deixar dominar por nossas antigas paixões.

Ainda o Apóstolo Paulo: "Com efeito, com a Lei eu morri apra a Lei, a fim de viver para Deus. Estou crucificado com Cristo. E já não sou  eu que vivo, é Cristo que vive em mim. E a vida que vivo agora na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim. Não torno inútil a graça de Deus. Porque, se a justiça vem através da Lei, então Cristo morreu inutilmente" (Gl 2,19-22). Façamos como o Apóstolo Paulo: Fixemos nosso ser e nosso agir na visão que Cristo nos propiciou. Manifestemos a vida de Deus em nós, eliminando, deixando para trás as obras mortas que nos impedem de testemunhar Cristo em nós e através de nós.

E, enfim, mais um pouco de Paulo: "Irrmãos, não penso que eu mesmo já tenha conseguido isso, mas uma coisa eu faço: esquecendo-me do que fica para trás e avançando para o que está adiante, corro em direção à meta, em vista do prêmio ao chamado do alto, prêmio que vem de Deus em Cristo Jesus" (...). "considero tudo como perda, diante do bem superior que é o Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele Perdi tudo, e considero tudo como lixo (skýbalon, em grego, esterco), a fim de ganhar Cristo, e ser encontrado nele (...) Quero assim conhecer a Cristo, o poder da sua ressurreição e a comunhão nos seus sofrimentos, assumindo a mesma forma da sua morte, para ver se de alguma forma alcanço a ressurreição dentre os smortos"; (Fl 3,13-14; 8-9a; 10-11).