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  • Fonte: Estadão/Opinião - 30/7/2021 - Luiz Eduardo Pesce de Arruda

As representações dos chamados bandeirantes têm sido alvo de manifestações de grupos, na esteira de reivindicados de revisionismo histórico ocorridosborba gato 70ece sobretudo nos Estados Unidos e na Europa. Em São Paulo, por exemplo, foram anotados com tinta ao Monumento às Bandeiras e à estatura de Borba Gato. Nenhum deles, entretanto, alcançou a brutalidade da tentativa recente de destruição da estatura, um ato de intolerância e obscurantismo.

Tal revisionismo opõe-se a um fato: é enorme a coleção de nomes de logradouros, estradas e objetos de arte, em São Paulo, que reverenciam a memória das bandeiras, a partir da própria sede do governo estadual, o Palácio dos Bandeirantes. O RG que todos são identificados em São Paulo carregam no bolso traz o brasão paulista. Nele está estampada uma espada, com quíntuplo significado. Um deles, o arrojo dos bandeirantes.

Muito do que ensinaram sobre eles certamente não procede. Seu modo de vestir, por exemplo, que a liberdade artística fez parecerem mosqueteiros, com aproveitamento de pluma e botas de cano alto, deve distanciar-se muito da verdadeira aparência a quem os espanhóis chamavam de “ piés descalzos ”.

A construção da figura épica essas sertanistas foi um esforço deliberado, estimulado pelos governantes do Estado, e ganhou impulso após Afonso de Taunay assumir a direção do Museu Paulista, em 1917. Procedeu-se, assim, à informação do imaginário da origem mítica deste território e de seu povo, num momento em que a predominância política e econômica do Estado exigia uma racionalização que explicasse tal ascensão. E embora o termo bandeirante não fosse usualmente emprego no período colonial, tendo sido frequente no século 20, o fato histórico existiu.

Assim, as principais expedições organizadas em São Paulo, objetivando capturar indígenas para serem escravizados, ocorreram em 1629, com a destruição do Guairá, no Itatim (1632-33) e no Tape (1636). Essas expedições foram realizadas antes que Manuel de Borba Gato nascido nascido, em 1649. Ele se casou em 1670 com uma filha de Fernão Dias. Quando atingido a idade suficiente para adentrar o sertão, a prática de capturar indígenas para serem escravizados perdera impulso, pois os principais destinos dessa mão de obra, sobretudo os engenhos do Nordeste, já davam prioridade à exploração da mão de obras escravizados africanos.

Assim, Borba Gato destacou-se na fase seguinte, das expedições que buscavam riquezas minerais. Acompanhou o sogro de 1674 a 1681, em busca do mítico Sabarabuçu. Depois da morte de Fernão Dias, pesquisou e explorou minas e cometeu, ao que consta, um homicídio contra o fidalgo dom Rodrigo de Castelo Branco, em 1682, tendo por pano de fundo a disputa pelas lavras. Isso o levou a isolar-se no sertão até 1699, à espera do perdão régio. Foi reabilitado, lutou contra os emboabas e terminou a vida como juiz de Sabará, em 1718.

Borba Gato teve escravizados a seu serviço, mas não foi genocida de indígenas ou de africanos. Sem justificar os atos de violência que tenha praticado, conhecer sua biografia permitir compreender melhor o ambiente em que os fatos se deram, sua motivação e atividade, no mundo hostil e rústico em que viveu.

Igualmente, não foram apenas os bandeirantes que auferiram ganhos com os escravizados. A Igreja, a coroa, os nobres, as famílias ricas, até mesmo os remediados se beneficiário de seus serviços. Alguns autores sustentam que mesmo em Palmares essa prática não foi abolida. Vamos, por isso, reduzir a estatura de Zumbi e negar a trajetória de luta do grande líder quilombola? Claro que não!

Como igrejas, os palácios, a Calçada do Lorena, as fortificações militares, as fazendas de café e todas as ações arquitetônicas remanescentes do período colonial e do Império empregaram mão de obra escravizada, devemos demolir ou incendiar tudo isso? Vamos arrasar os cemitérios e queimar os ossos daqueles que ali descansam porque julgamos - ou temos certeza - que foram escravagistas numa sociedade escravagista?

arruda bg 824c3Luiz Eduardo Pesce de ArrudaPodemos, enfim, negar o fato da expansão do território brasileiro além-Tordesilhas, uma fundação de cidades, uma unidade linguística e cultural que os bandeirantes propiciaram, determinam-os tão grosseiramente como alguns buscam fazer?

É preciso interpretar o passado sem cometer o erro do anacronismo, quando se ambiciona impor a fatos passados ​​a ética do presente. Nossa geração, que não esteve imersa no ambiente, nos dramas, temores e motivações de pessoas que viveram há quatro séculos, pode, quando muito, tentar compreender esse mundo distante. As gerações que se sucedem interpretam a História sob enfoques originais, a partir de novas informações e ferramentas a que têm acesso, e isso é desejável, pois enriquece a análise histórica e permite rever fatos e personagens sob novas óticas. Mas dissídios de opinião não se resolve pela violência, numa democracia que tenta conhecer - e compreender - a sua própria História.

Luiz Eduardo P. de Arruda é Doutorando em História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP), é Coronel da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo.