As representações dos chamados bandeirantes têm sido alvo de manifestações de grupos, na esteira de reivindicados de revisionismo histórico ocorridos sobretudo nos Estados Unidos e na Europa. Em São Paulo, por exemplo, foram anotados com tinta ao Monumento às Bandeiras e à estatura de Borba Gato. Nenhum deles, entretanto, alcançou a brutalidade da tentativa recente de destruição da estatura, um ato de intolerância e obscurantismo.
Tal revisionismo opõe-se a um fato: é enorme a coleção de nomes de logradouros, estradas e objetos de arte, em São Paulo, que reverenciam a memória das bandeiras, a partir da própria sede do governo estadual, o Palácio dos Bandeirantes. O RG que todos são identificados em São Paulo carregam no bolso traz o brasão paulista. Nele está estampada uma espada, com quíntuplo significado. Um deles, o arrojo dos bandeirantes.
Muito do que ensinaram sobre eles certamente não procede. Seu modo de vestir, por exemplo, que a liberdade artística fez parecerem mosqueteiros, com aproveitamento de pluma e botas de cano alto, deve distanciar-se muito da verdadeira aparência a quem os espanhóis chamavam de “ piés descalzos ”.
A construção da figura épica essas sertanistas foi um esforço deliberado, estimulado pelos governantes do Estado, e ganhou impulso após Afonso de Taunay assumir a direção do Museu Paulista, em 1917. Procedeu-se, assim, à informação do imaginário da origem mítica deste território e de seu povo, num momento em que a predominância política e econômica do Estado exigia uma racionalização que explicasse tal ascensão. E embora o termo bandeirante não fosse usualmente emprego no período colonial, tendo sido frequente no século 20, o fato histórico existiu.
Assim, as principais expedições organizadas em São Paulo, objetivando capturar indígenas para serem escravizados, ocorreram em 1629, com a destruição do Guairá, no Itatim (1632-33) e no Tape (1636). Essas expedições foram realizadas antes que Manuel de Borba Gato nascido nascido, em 1649. Ele se casou em 1670 com uma filha de Fernão Dias. Quando atingido a idade suficiente para adentrar o sertão, a prática de capturar indígenas para serem escravizados perdera impulso, pois os principais destinos dessa mão de obra, sobretudo os engenhos do Nordeste, já davam prioridade à exploração da mão de obras escravizados africanos.
Assim, Borba Gato destacou-se na fase seguinte, das expedições que buscavam riquezas minerais. Acompanhou o sogro de 1674 a 1681, em busca do mítico Sabarabuçu. Depois da morte de Fernão Dias, pesquisou e explorou minas e cometeu, ao que consta, um homicídio contra o fidalgo dom Rodrigo de Castelo Branco, em 1682, tendo por pano de fundo a disputa pelas lavras. Isso o levou a isolar-se no sertão até 1699, à espera do perdão régio. Foi reabilitado, lutou contra os emboabas e terminou a vida como juiz de Sabará, em 1718.
Borba Gato teve escravizados a seu serviço, mas não foi genocida de indígenas ou de africanos. Sem justificar os atos de violência que tenha praticado, conhecer sua biografia permitir compreender melhor o ambiente em que os fatos se deram, sua motivação e atividade, no mundo hostil e rústico em que viveu.
Igualmente, não foram apenas os bandeirantes que auferiram ganhos com os escravizados. A Igreja, a coroa, os nobres, as famílias ricas, até mesmo os remediados se beneficiário de seus serviços. Alguns autores sustentam que mesmo em Palmares essa prática não foi abolida. Vamos, por isso, reduzir a estatura de Zumbi e negar a trajetória de luta do grande líder quilombola? Claro que não!
Como igrejas, os palácios, a Calçada do Lorena, as fortificações militares, as fazendas de café e todas as ações arquitetônicas remanescentes do período colonial e do Império empregaram mão de obra escravizada, devemos demolir ou incendiar tudo isso? Vamos arrasar os cemitérios e queimar os ossos daqueles que ali descansam porque julgamos - ou temos certeza - que foram escravagistas numa sociedade escravagista?
Podemos, enfim, negar o fato da expansão do território brasileiro além-Tordesilhas, uma fundação de cidades, uma unidade linguística e cultural que os bandeirantes propiciaram, determinam-os tão grosseiramente como alguns buscam fazer?
É preciso interpretar o passado sem cometer o erro do anacronismo, quando se ambiciona impor a fatos passados a ética do presente. Nossa geração, que não esteve imersa no ambiente, nos dramas, temores e motivações de pessoas que viveram há quatro séculos, pode, quando muito, tentar compreender esse mundo distante. As gerações que se sucedem interpretam a História sob enfoques originais, a partir de novas informações e ferramentas a que têm acesso, e isso é desejável, pois enriquece a análise histórica e permite rever fatos e personagens sob novas óticas. Mas dissídios de opinião não se resolve pela violência, numa democracia que tenta conhecer - e compreender - a sua própria História.
Luiz Eduardo P. de Arruda é Doutorando em História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP), é Coronel da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo.