Uma tragédia que as bibliotecas desapareçam, que a juventude já não leia como se fazia em tempos ainda imunes à tirania das redes sociais.
Amor aos livros
Não são poucos os que dizem que o livro vai acabar. Hoje tudo está na telinha ou nas nuvens. Não é preciso reservar espaço para guardar um objeto que está com os dias contados.
Sou um animal em extinção. Ainda compro livros, leio livros, guardo livros. Tenho ciúmes dos meus livros.
Não sou tão organizado como Rui Barbosa. Ele sabia onde estavam todos os seus livros e, quando alguém indagava sobre um deles, sabia responder com exatidão: "Está no gabinete gótico, estante oposta às janelas, primeira ou segunda prateleira, a contar de cima, segundo ou terceiro corpo a contar da esquerda".
Rui não tinha um fichário de sua biblioteca. A catalogação se fez depois de sua morte, quando localizados e identificados cerca de trinta e cinco mil volumes. Como diz Edgard Baptista Pereira, "Em vida, seu fichário era a sua cabeça, aquela "portentosa memória", a que se referia Afonso Celso, e que nunca falhava: "Para que catálogo?", interrogou uma vez. "Já necessitei acaso de algum livro que o não fosse buscar no seu lugar? Quando precisar de catálogo, não precisarei mais de livros!".
Durante mais de cinquenta anos comprou livros, em todos os idiomas e para todos os assuntos. Em Latim, que conhecia perfeitamente, em inglês, italiano e espanhol, que falava e escrevia com fluência, no alemão, que traduzia sem dicionários, obras raras e vulgares, edições preciosas e comuns, todos os dias acrescida de novos exemplares. Quando chegava em casa com livros que comprara, D. Maria Augusta, a esposa, o não recriminava. "Perdoa, minha filha. Já é uma verdadeira mania". E ela, beijando-o ternamente: "Mas Rui, não há de que perdoar. É a tua ferramenta de trabalho!".
Para Rui, os livros eram aquilo que Renan também achava: eram almas embalsamadas. Cuidava deles e deles não se esquecia mesmo quando nas aflições do exílio. "O que eu desejaria saber particularmente", escreve de Londres, em 1894, ao primo Jacobina, que foi o anjo bom do expatriado, "é como se houveram com os meus livros, e como atravessaram eles essa prova. São amigos fieis, avis rara. Tenho por eles, pois, sempre o mesmo interesse, ainda, que já não sei que serviços hoje mais me possam prestar. Sua preservação me é cara. Você não se esqueça, portanto, de recomendar-me a quem de direito o tratamento constante pela naftalina, administrada em profusão".
Como todo bom bibliófilo, Rui era ciumento de seus livros. Não gostava de emprestá-los e ninguém tinha coragem de lhos pedir. Certa feita, o deputado Leovigildo Filgueiras, a quem Rui muito prezava, mandou pedir-lhe emprestada a obra de Pomeroy Na Introduction to the Constitutional Law of the United States. Rui demorou a responder. Fê-lo, porém, enviando-lhe de presente o livro, que mandara buscar nos Estados Unidos: "Ao meu prezado amigo L. Filgueiras, Rio, 28.10.1892. Rui Barbosa". Filgueiras entendeu a dedicatória. Nunca mais pediu livros a Rui.
Outra vez, não conseguiu fugir ao pedido de conhecido advogado que precisava do sexto volume do Cours de Droit Civil de Aubry et Rau. Mandou comprar outro no Briguiet, para substituí-lo, dizendo ao seu secretário Antonio: "Ponha-o no lugar que o outro não volta mais". O milagre, contudo, aconteceu. O livro foi devolvido e hoje, na Biblioteca de Rui, na Casa Rui Barbosa, Rua São Clemente, 134, Laranjeiras - Rio de Janeiro, há o sexto volume do tratado francês em duplicata.
Rui Barbosa herdou do pai o ciúme dos bibliófilos. Castro Alves pediu a ele um volume das obras de Castilho Antônio. Rui nunca se esqueceu disso. Não pelo valor do livro, mas pelo princípio. Guardara o ressentimento do pai pelo fato de Rui trazer da Bahia uma obra clássica de Duverger sobre o Parlamentarismo. Acreditava que o pai, médico, não precisasse consultá-la. O pai não relevou ao filho a falta e escreveu-lhe para São Paulo, delicadamente descontente, mas descontente.
Livro, na verdade, não é feito para se emprestar. Cada um tem a sua maneira de ler. Alguns anotam, outros não. O manuseio deforma o livro. Nem todos têm o mesmo cuidado. Não me esqueço do empréstimo de um exemplar sobre interpretação de sonhos, de Sigmund Freud, que um querido amigo levou para ler no fim de semana e que, até hoje, nem me devolveu, nem me fala a respeito.
Uma tragédia que as bibliotecas desapareçam, que a juventude já não leia como se fazia em tempos ainda imunes à tirania das redes sociais e à superficialidade econômica do vocabulário, aos poucos reduzido a interjeições, e-mojis e onomatopeias. Talvez seja um dos últimos a não me envergonhar de confessar meu profundo amor aos livros e do ciúme extremo em relação a cada um deles.