Costumo dizer para meus alunos universitários que se quiserem conhecer alguns dos verdadeiros problemas do nosso país, basta fazer o levantamento dos temas sobre os quais se calam algumas confissões religiosas. Pode parecer crítica exacerbada, mas, sem querer promover reducionismos, de uma religião não ociosa temos o direito de esperar a canalização de suas energias para o debate e as proposições que ajudem a solucionar os substanciais problemas de um povo. Não como se a religião devesse substituir universidades, sindicatos, partidos políticos, associações de classes etc. mas ela não pode ser omissa sobre nenhum problema que interesse ao desenvolvimento integral da nação, desde que, no caso do judeo-cristianismo, reflita e trabalhe sempre à luz da fé na Palavra de Deus, da justiça e da solidariedade, que é também um modo de falar de amor (hésed-agápe) .
Muitas vezes, quando sintonizamos vários programas de televisão ou de rádio, temos a impressão de que alguns líderes religiosos estão falando para outros planetas, para um mundo do faz de conta. Ora, se for para eles reproduzirem o marasmo, a incompetência, o desperdício e o deboche da maioria dos políticos, seria melhor que eles nem sequer existissem. Mas já que existem, que pelo menos façam severa autocrítica, e se transformem para melhor. Tal como alguns partidos políticos, nem toda religião está à altura de prestar um serviço de valor ao povo.
Em caso de erro, a religião deve ser humilde e pedir perdão. Podemos falar desse modo: primeiro, com o exemplo da Igreja Católica, que vem reconhecendo seus erros e pedido perdão (o Papa João Paulo II pediu perdão 92 vezes; o atual Papa Francisco também tem pedido perdão publicamente); segundo, porque do púlpito de nossas igrejas, de suas escadarias e sob sua influência religiosa, ecoaram algumas das mais necessárias, significativas e históricas palavras e ações em favor da justiça, da solidariedade e da paz para os nossos povos.
Ao ler o primeiro livro sobre o cardeal Jorge Bergoglio – hoje Papa Francisco, líder de 1,2 bilhão de católicos – publicado no Brasil (Sobre o Céu e a Terra. Ed. Paralela/Schwarcz, original argentino de 2010), constatei, com grande satisfação, que o ideário cultural, teológico e pastoral deste religioso é de grande envergadura. Ele trata de assuntos realmente importantes, tais como a política, pobreza, relações internacionais, poder, ciência, meio ambiente. Não evita temas polêmicos, por exemplo: aborto, eutanásia, união civil entre pessoas do mesmo sexo. E não se omite em abordar aspectos fundamentais da natureza humana: o mal, a culpa, a velhice, a morte, valores, família, afetividade, ideologias, solidariedade etc.
Este livro, porém, não contém somente as ideias do cardeal. Ele traz também o pensamento de outro líder religioso, o rabino-mor de Buenos Aires, Dr. Abraham Skorka, quinze anos mais jovem que o Papa. Ambos tiveram, antes de seus estudos teológicos, formação científica e filosófica. Certamente esse lastro cultural os ajudou a desenvolverem raciocínios robustos, realísticos e ao mesmo tempo respeitosos para com o leitor, dentro de uma pluralidade de mundivisões.
O que é mais importante: não se trata de pensamentos apenas paralelos. Um dos valores da obra está no seu caráter dialógico. O arcebispo e o rabino – incrivelmente livres dentro de seus universos sócio-religiosos – realmente se mostram amantes e praticantes do diálogo. Mantendo-se cada qual muito cristalino em suas convicções (aliás condição básica para um verdadeiro diálogo) e porque sabem demolir as barreiras e contornar as resistências provindas do pré-julgamento, atingem as similitudes que os tornam amigos e irmãos.
Um maravilhoso testemunho da cultura do encontro! Este é o espaço que as religiões deveriam criar, alimentar, amadurecer e fruir. É fácil perceber que nosso país só poderia crescer com iniciativas semelhantes. Mais do que competição entre si, a cultura do encontro pode ajudar os povos a superarem divergências históricas, vaidades comezinhas, intolerâncias, inoperâncias.
Somente o diálogo promove o conhecimento, o conhecimento conduz ao respeito, à aproximação, ao afeto, à amizade, à fraternidade. E tudo isso se torna um convite à ação benfazeja, ao trabalho sem dispersão de esforços, à missão de testemunhar os valores testados e aprovados, embora sempre historicamente corrigidos e aprimorados, pelas milenares tradições do judeo-cristianismo.
São Paulo, Janeiro de 2018.
Domingos Zamagna - Jornalista e professor de Filosofia