Explicar Mário de Andrade em poucas palavras é complicado. Poeta, romancista, musicólogo, historiador, folclorista, crítico de arte e fotógrafo, tudo ao mesmo tempo e sempre de forma criativa. Tal postura é algo raro, por isso precisa ser mais bem explicada e não há espaço mais diferenciado que este portal voltado aos leitores que acompanham os textos trazidos pelos componentes desta sempre querida e respeitada Academia Cristã de Letras – ACL. nos dias de hoje realiza tantas atividades ao mesmo tempo e de uma só vez? Eram outros tempos: Mário de Andrade fazia tudo sozinho, sem ajuda do computador, somente da máquina de escrever.
Mário de Andrade está entre os fundadores do modernismo brasileiro, embora sua participação na Semana de Arte Moderna, realizada em fevereiro de 1922, tenha sido pequena. Ele recitou apenas no primeiro dia seus poemas nas escadarias internas do Teatro Municipal. Dizem que levou vaias de uma plateia ainda pouco informada sobre os novos conceitos artísticos e estéticos que estavam sendo propostos. Sua publicação mais famosa, “Paulicéia Desvairada”, sairia somente em novembro daquele mesmo ano. O livro é composto de 22 poemas curtos que retratam segmentos da vida paulistana, para culminar em um longo poema final.
“Profundo. Imundo Meu Coração. . . olha o Edifício! Os vícios me corromperam na bajulação sem juros. . . minha alma, corcunda como a avenida São João. . .”
Com toda certeza, o público que inicialmente vaiou Mário de Andrade, fez depois melhor avaliação, deglutiu suas palavras e passou a admirá-lo. Daí, a enorme influência do modernismo no modo de escrever dos autores que vieram depois.
“Eu sou a fonte da vida. Do meu corpo nasce a terra. Na minha boca floresce a palavra que será... Eu odeio os que se amontoam e são a fonte da morte. Eu sou a fonte da vida. Não conte o segredo aos grandes e sempre renascerá (em você) força, amor, trabalho e paz”. (Mário de Andrade em Café – Hino Fonte da Vida)
Mário Raul de Morais Andrade nasceu em São Paulo, a 9 de outubro de 1893. Seu pai Carlos Augusto de Andrade era jornalista e escritor. Sua mãe, Maria Luísa de Almeida Leite Moraes de Andrade, entendia de música. Durante sua infância Mário é chamado de pianista prodígio e, adolescente, se matricula no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, onde já estava seu irmão mais novo Renato. Em 1913, entretanto, este irmão, então com 14 anos, morre após um golpe recebido enquanto jogava futebol e o acontecimento causa profundo choque à família.
O trauma impõe a Mário tremores nas mãos e isto o faz abandonar o piano e tornar-se introspectivo. Voltado à literatura, publica em 1917 seu primeiro título; “Há uma Gota de Sangue em Cada Poema”, sob o pseudônimo Mário Sobral.
Passa a escrever artigos para os jornais, é quando surge a polêmica com Monteiro Lobato que faz duras críticas aos modernistas aos quais acusa de terem influenciado erradamente a artista plástica Anita Malfatti, em seu artigo no Estadão, o que deixa Mário de Andrade indignado em relação a Lobato.
Da discussão surgem as iniciativas para a realização da Semana de Arte Moderna e a cultura brasileira antes centrada apenas no Rio de Janeiro volta suas atenções para São Paulo, embora o bairrista Ruy Castro, do alto da arrogância de sua cadeira nº 13 da Academia Brasileira de Letras, tenha tentado refugar a importância do movimento modernista, em seu pronunciamento a um canal televisivo, durante as comemorações do centenário da Semana de 22. Ao nosso ver, as tendências apresentadas durante aquela semana revolucionária, modificaram conceitos que passaram a ser seguidos por outros artistas. Na literatura as mudanças de comportamento aparecem delineadas no prefácio de “Paulicéia Desvairada”, escrito pelo próprio Mário e nos poemas da obra.
O prefácio não fala do livro, mas de uma atitude geral perante a literatura, uma espécie de manifesto poético em versos livres. “Estou fundado no desvairismo, o meu texto é meio a sério e meio a brincar...” nas palavras do próprio Mário de Andrade.
Convém ressaltar que “Paulicéia Desvairada” é o primeiro livro do autor que se refere a São Paulo como metrópole, ao mesmo tempo, ele demonstra seu amor à cidade ao chamá-la de “minha noiva, minha vida”. Cinco anos depois, em 1927, Mário viaja pelo norte e nordeste do Brasil coletando folclore e sua pesquisa revela grande número de lendas e tradições que se perderiam no tempo, não fosse a intervenção do poeta. Desse trabalho surgem as sementes de “Macunaíma”, sua grande obra.
“No fundo do mato virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Urariquera, que a índia Tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma. Passou a infância a reparar no trabalho dos outros. Nem falar, falava o danado. Vivia entre os banhos no rio e as relações perigosas com a mulher do irmão Jiguê Sofará. Transformava-se num príncipe e passava horas a brincar com ela. E a qualquer tentativa de fazer o pequeno reagir para a vida, logo a frase vinha: ‘Ai, que preguiça’.”
A melhor definição de “Macunaíma” vem do próprio Mário de Andrade que o trata como representante do povo brasileiro e por isso mesmo sem caráter. Disso viria a explicação: “Esse caráter nada tem a ver com moral, falta caráter pelo fato de não haver nada que o caracterize, ou seja, o brasileiro ainda é um povo em formação.” A primeira edição deste livro, é de 1928. Durante a década de 1930, Mário se torna diretor-fundador do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, papel que já vinha exercendo de modo informal, como catalisador da modernidade artística na cidade e no país. Por questões políticas, na troca de prefeito, o novo empossado afasta Mário de Andrade de suas funções e isso o deixa profundamente magoado. Logo em seguida, convidado por Gustavo Capanema, ministro da Educação mais longevo na história do Brasil com 11 anos no cargo. Mário passa a atuar no Rio de Janeiro em uma função parecida à que exercia na capital paulista.
No Rio, trava amizade com vários intelectuais entre os quais Raquel de Queiroz, de quem se tornaria grande amigo e confidente, mas como não suportava ficar longe de São Paulo, o poeta decide retornar à sua Paulicéia. Novamente inicia suas pesquisas de folclore e nesse ínterim escreve, em 1942, “A Meditação Sobre o Tietê”: “Água do meu Tietê, onde me queres levar? Rio que entras pela terra e que me afastas do mar...” Entre o estudo e a poesia, Mário de Andrade prossegue até o descanso final iniciado naquele 25 de fevereiro de 1945, quando então se cala para sempre, da mesma forma como se calam os pássaros, ou seja, no silêncio das madrugadas.
* Geraldo Nunes, jornalista e escritor, é titular da cadeira 27 da Academia Cristã de Letras - ACL