LEQUE ABERTO, esse é o título de uma das crônicas do livro, referindo-se ao leque como objeto, uma lembrança materna e como símbolo de vaidade e sedução. “Leque” também é o conjunto de possibilidades, temas, referências, observações e estudos dessa coletânea.
A semioticista, crítica de arte, Professora Rita Pacheco Limberti, que escreveu o prefácio da obra, buscando um fio condutor nessa diversidade, agrupou os poemas nas seguintes partes: “Abre-se o Leque” (caminhos de autoconhecimento); “As Hastes do Leque” (assuntos dramáticos); “A Renda do Leque” (sofrimentos e dores); “Os Adornos do Leque” (leituras, quadros e música); “Fecha-se o Leque” (os labirintos interiores); “O Mofo no Leque” (textos escritos durante a pandemia) e “Epílogo”. Da primeira à última página avulta a figura da mãe da autora, falecida recentemente.
Há dois ensaios nessa reunião: “Delírio Pessoano: vi Ricardo Reis no Rio de Janeiro certa vez”, base de uma palestra dada por Naveira na União Brasileira dos Escritores do Rio de Janeiro, sobre Ricardo Reis, o heterônimo de Pessoa e “ O Cântico dos Cânticos: um Jardim Fechado” sobre o maior cântico nupcial escrito até hoje, atribuído ao rei Salomão.
O tom dessas crônicas é sempre intimista, reflexivo, poético, demonstrando a erudição, a sensibilidade e, ao mesmo tempo, o poder de comunicação de Naveira sobre seu leitor, preso nas rendas e adornos deste belo leque.
Segue a crônica LEQUE ABERTO:
Encontrei entre os guardados de minha mãe, um leque. Um leque vermelho como uma aurora boreal. A renda toda revestida de lantejoulas rubras. Abri as hastes brancas de madrepérola e ele fez um estranho som. Fechei novamente como quem toca um instrumento de flerte e sedução. Era tão vaidosa a minha mãe! Nascera mulher, preocupada com seus retratos e decotes, com o que os outros pensariam de sua beleza. Uma necessidade enorme de ser notada, de não passar nunca despercebida. Às vezes isso a fazia cair um vácuo, num vazio absoluto, que doía em sua velhice.
Abro o leque sobre o rosto, escondendo a boca. O gesto trouxe à minha memória o trecho de um poema de Fernando Pessoa: “O teu silêncio é um leque,/ Um leque fechado,/ Um leque aberto seria tão belo, tão belo,/ Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque.” Que analogia! O silêncio como um leque fechado, um enigma, um mistério, um fascínio. O leque desdobrado, mas sem abanar a dama, entregue a seus pensamentos. O leque esquecido em seu colo, o cabelo solto, as chamas saindo do seu corpo. Quanta feminilidade!
No mesmo poema, o “Hora Absurda”, o poeta afirma que “já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora”. O pavão é a pura imagem da vaidade. Essa ave, que simbolizava a deusa Juno, abria a cauda em forma de leque e provocava chuvas de fertilização celeste. O leque em círculo evoca mesmo um céu de estrelas, miríades de olhos na plumagem azul-esverdeada. Por um instante é como se nossa alma se deparasse com o cosmos.
Este leque talvez seja a cauda de um pavão vermelho. As pedrarias, gotas de ciúme, um princípio de corrupção. Ânsia de sangue real e imortalidade. Um atiçador de fogo. “Vaidade de vaidades! É tudo vaidade”, escreveu o rei Salomão em sua contemplação da raça humana. Tudo é vaidade e aflição do espírito. Confessemos o quanto somos vaidosos. O nosso cuidado exagerado com a aparência. O desejo de atrair admiração e elogios. A necessidade de ter a própria existência reconhecida. Caprichamos nas vestimentas, comportamentos, bens, eloquência, cultura. Artistas e poetas, então, como trabalham vaidosamente debaixo do sol. A sede de comunicação faz violentar até os temperamentos tímidos. E se aumentam em conhecimentos, aumentam sua dor. Correm atrás do sonho, entre leques de grandes plumas. Confessemos, pois há o perigo iminente de cairmos nas falsas esperanças do mundo. Percebamos, enquanto há tempo, as sérias realidades do mal, da injustiça e da morte que nos cercam e enlaçam. Fiquemos em comunhão com Deus, com a obra de amor que Ele quer fazer em nossa vida. Entreguemos nossos poemas como se fossem pássaros buscando o infinito.
Tudo é vaidade. “Tudo névoa-nada”, escreveu o poeta e tradutor Haroldo de Campos, em sua “transcriação” do Eclesiastes, a partir do texto em hebraico, mantendo o ritmo poético, a sonoridade e a rede metafórica original. Haroldo fugiu da palavra “vaidade” e usou expressões como “fome-de-vento”, “fumaça”, “vapor”, “ilusão passageira”. Dirigindo-se aos poetas e sábios alertou: “Aonde a ciência cresce/ acresce a pena”. // Tudo é vaidade, mas não ter vaidade seria a maior de todas as vaidades. Vaidosas e esmagadas, minha mãe e eu. Abro e fecho com fúria o leque em minhas mãos.
RAQUEL NAVEIRA nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 23 de setembro de 1957. É formada em Letras e em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Escritora, professora universitária aposentada pela UCDB, crítica literária e palestrante. Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, autora de vários livros de poemas, ensaios, romance e infantojuvenis. Colaboradora de diversos jornais e revistas como o Correio do Estado (MS), a revista Conhece-te (Minas Gerais), o Jornal de Letras (RJ), o jornal Linguagem Viva (SP), entre outros. Deu palestras em várias universidades do Rio de Janeiro e de São Paulo e em aparelhos culturais como Casa das Rosas, Casa Mário de Andrade, Casa Guilherme de Almeida e PEN Clube do Brasil. Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras de São Paulo e ao PEN Clube do Brasil. Sócia correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, Classe de Letras.
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