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Raquel Naveira

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Que emoção quando uma amiga me disse: “_ Camões gostaria de ler os seus poemas.”

Camões, o gênio, o visionário, o eleito da Poesia. Caminhei com ele tantas vezes pelas ruas de Lisboa, lembrando sua história, sua vida trágica, mergulhado em labirintos e angústias. De origem fidalga, travou contato com escritores antigos e modernos como Homero, Virgílio, Ovídio e o clássico Sá de Miranda. Belo, motivou paixões proibidas em damas da corte como D. Maria, filha de D. Manuel e Catarina Ataíde, que ele chamou de Natércia em seus versos. Envolveu-se em brigas e confusões; perdeu um olho em combate; escapou da prisão depois de ferir um servidor do Paço; viajou para a Índia e para a China, em Macau; naufragou na foz do rio Mecon, ocasião em que, segundo a lenda, salvou o manuscrito d’Os Lusíadas, mas perdeu Dinamene, sua companheira; partiu para Moçambique, assombrado por dívidas; peregrinou miseravelmente até que Diogo do Couto conseguiu propiciar-lhe condições de regressar a Portugal; morreu pobre e abandonado no dia 10 de junho de 1580, ano em Portugal passou ao domínio da Espanha. Cumpriu-se assim o epílogo melancólico d’Os Lusíadas, quando o poeta descobre que tem a lira “destemperada e a voz enrouquecida,/ E não do canto, mas de ver que venho/ Cantar a gente surda e endurecida.” Ao mesmo tempo, o fim de sua desventurada existência e os anos tristes de Portugal, após a glória das viagens marítimas e os delírios de grandeza. Camões, o que sofreu a inquietação universal, a dor cósmica, o drama da condição humana esmagada pelo fado, pela mão cruel do destino.

Escrevi “Camões em Macau”:

Macau,/Entreposto português na China,/Às margens do rio das Pérolas/Que adornam a fronte da deusa A-má/Refletida no mar de espelho,/Azul, manchado de vermelho.

Camões,/O poeta,/O soldado,/O aventureiro,/O exilado,/Desce da nau,/Sobe à colina,/Ali encontra uma gruta entre rochedos,/Um refúgio/Para armar sua rede,/Guardar a espada/E afiar a pena;/Escreve então um longo poema/De heróis trágicos,/De deuses mitológicos,/Paixões,/Intrigas,/Batalhas e cobiças,/Salvou a si mesmo/E ao nosso idioma.

Lá embaixo, na ilha,/O calor é sufocante,/Sopram os tufões,/Há jogatina,/Licores,/Cavalhadas,/Amigos vadios/E saiotes de meretrizes,/O poeta perde a fibra/E o fôlego,/Afoga-se em tormentas/Nadando a vau.

Naufrágio.../Salta do barco,/Braçadas,/Mais braçadas,/O manuscrito colado ao corpo,/Dinamene,/Escrava de quem era escravo,/Engolida no turbilhão,/Terra firme,/Desmaia agarrado ao couro do gibão,/Febre,/Ânsias,/Ardência,/Dói seu coração.

Macau foi seu destino,/Rolar como um calhau,/Bastava-lhe amor,/Mas os erros,/A violência,/Os duros fados/Se conjuraram aos desígnios/De um terrível anjo mau.

E este poema tributo:

No mosteiro dos Jerônimos/Acariciei as esculturas do claustro,/Fixei nos olhos e na mente/Os desenhos da abóbada/E dos portais.

A lembrança de Camões,/Grave e tensa,/Percorreu a minha espinha,/O meu sangue português,/Com a força/De múltiplas solidões.

Meu corpo todo tremeu,/Como nau no oceano,/Mergulhei num mundo sombrio,/Num labirinto de sal.

Uma flecha/Vinda dos cosmos,/Trespassou de dor meus pulmões,/Foi um calafrio de tortura/A consciência do sofrimento/De um ser tão culto,/Tão sensível/Como Camões.

Foi uma inquietação,/Uma vertigem,/Sentir o valor da vida,/Miserável e grandiosa,/O amor,/O profundo respeito,/Como se eu devesse a Deus e aos homens/Mil perdões.

A minha amiga disse que Camões gostaria de ler meus poemas. Que honra. Que choque. Que cena. Seria possível? Ele, num mundo transcendental e eu, neste beco sem saída, enclausurada neste envoltório de carne?