Raquel Naveira
Quer conhecer o coração desta cidade? O lugar palpitante, onde escorrem sangue e águas de rios primordiais? Quer tocar na artéria mais quente? Pegue o metrô central e desça na Sé. Deixe-se levar pelas ondas de movimento da multidão que se espalha como gado pelos subterrâneos, pelos mezaninos, pelas plataformas de concreto até chegar lá fora, à praça. Seu olhar pousará impactado sobre a imensa catedral neogótica, ladeada de palmeiras. Sede episcopal, estrutura de poder, daí a palavra “Sé”. Esse terreno foi escolhido pelos jesuítas e pelo cacique Tibiriçá para erguimento do primeiro templo da aldeia gigante.
Em frente, entre lagos azulados, fica o Marco Zero, monumento de mármore em forma hexagonal, rosa dos ventos que aponta para outros caminhos: araucárias, navios, bananeiras, bateias onde se peneiram ouro e pedras preciosas. Foi desse espaço cósmico, acompanhados pelas arribações dos pássaros, que os bandeirantes partiram por esse Brasil afora, sururucando no mato.
Marco Zero, título de um livro experimental escrito pelo modernista polêmico, Oswald de Andrade. Um romance paulista, de flashes ofuscantes sobre a complexidade da metrópole: a transformação de uma sociedade latifundiária e semifeudal em pré-industrial; a imigração tensa; as crises do capitalismo mundial; as guerras internacionais; os comícios de ideias; as tendências marxistas e anarquistas; o colapso econômico do café; a luta bruta por dinheiro; o contraste entre ricos e pobres. Um caldeirão antropofágico de elementos borbulhantes.
E no “Beco do Escarro” uma profusão de personagens loucos, bêbados, posseiros, prostitutas, homossexuais, miseráveis que perderam tudo. O ódio, a desunião, os assassinatos por motivos fúteis na Hospedaria do Piolho Vermelho.
Você verá que, embora obscuro, o romance Marco Zero permanece atual em seus impasses quando subir as escadarias da igreja, onde mães aflitas seguram cartazes buscando os filhos desaparecidos, engolidos por essa cidade de fossos, muralhas queimadas e revoluções melancólicas.
Ao lado da estátua do apóstolo Paulo, que deu nome à cidade, um mendigo que vasculhava o lixo procurando comida, encontrou dentro de um saco a cabeça de um homem embrulhada num vestido vermelho. Nesse dia, os olhares das pessoas sem rumo ficaram ainda mais vazios e perdidos.
Vista-se de negro, leve um turíbulo de prata para espalhar incenso e fumaça, pegue o metrô e desça na Sé. É o princípio. A letra alfa. O marco zero. Abra bem o peito e sinta como o coração se debate.