Há pouco tempo, minha mãe partiu. As cenas dela no hospital, entubada, oculta por uma cortina azul, não saem de meu pensamento. O médico explicou-me que a situação era irreversível. Depois, em tom baixo, deu-me um conselho: “_ Se puder, venha visitá-la em todos os horários e ore por ela. Isso faz diferença.” Impactada por aquelas palavras, obedeci. Um médico solidário, ético, refleti.
De repente, de um canto de minha memória, saltou a imagem de um quadro num consultório antigo: “O Médico”, do pintor inglês, Sir Samuel Luke Fields. Tratava-se de uma cena familiar. Uma casa simples, uma menina de cabelos encaracolados, enferma, pálida, febril, desmaiada num catre amparado por cadeiras desencontradas. O médico contemplando a criança, intrigado, tentando um tratamento, perplexo diante do mistério da vida e da morte. A mãe ao fundo, debruçada, chorando sobre a mesa, temendo o pior. O pai de pé, aflito, estendendo o braço em direção à mulher. Tudo nas sombras. Um abajur aceso, uma janela deixando entrar os primeiros raios de sol, os raios da esperança. Dizem que Fields pintou esse quadro inspirado na dolorosa experiência da perda de seu filho. O médico lembra mesmo o próprio Fields. Um quadro icônico, idílico, retratando os valores do médico ideal que se relaciona com o paciente com cuidado, compaixão, empatia pela dor. Parecido com o médico do quadro, aquele que manteve a sua humanidade para comigo e minha mãe, mesmo numa instituição de poder, um hospital tão grande e frio.
O Dr. Helio Begliomini, conceituado urologista paulistano, fez uma pesquisa interessante: o território comum entre a medicina e a literatura. O seu livro Esculápios da Casa de Machado de Assis é um levantamento dos médicos que fizeram parte da Academia Brasileira de Letras. Esculápio é sinônimo de médico. Era o deus da medicina na mitologia grega. Foi esculpido segurando um bastão com folhas e uma serpente enrolada, símbolo da arte da cura, dos segredos das poções, dos venenos, dos antídotos e ervas.
O médico-escritor Moacyr Scliar comenta no prefácio dessa obra que há mesmo pontos de ligação entre essas atividades, pois nada é mais revelador da condição humana do que a doença. Quando a pessoa está gravemente doente, caem suas máscaras e ela se revela tal qual é. A literatura usa a palavra como instrumento estético. A medicina também usa a palavra com forma de investigação, comunicação, terapia. Se “de médico e de louco todo mundo tem um pouco”, pode-se afirmar então que de artista e de escritor, todo médico tem um pouco. No Brasil, a lista de médicos-escritores inclui Joaquim Manoel de Macedo, Manuel Antonio de Almeida, Jorge de Lima, Guimarães Rosa, Pedro Nava. Médicos que liam e escreviam, talvez na hora do crepúsculo.
“Pensar é estar doente dos olhos”, disse Alberto Caeiro. Todas as coisas belas do mundo são filhas da doença. O homem cria a beleza como remédio para sua doença, como bálsamo para a melancolia, a angústia, a depressão, o medo de morrer. Toda arte é fruto de sofrimento. É o preço que se paga para alcançar a beleza. E como temos fome de Beleza!
Não esqueçamos do grande médico que foi o apóstolo Lucas. Dedicou-se à missão nobre de curar. Sendo sírio, estudou Medicina com os sacerdotes babilônios que utilizavam as forças magnéticas, os poderes de estranhas pedras que absorviam o câncer e os tumores, o hipnotismo, a prática psicossomática. Esse saber foi destruído com o incêndio da Biblioteca de Alexandria. A medicina e a ciência da era moderna estão começando a redescobrir essas coisas. Se a ciência da Babilônia tivesse chegado aos nossos dias, o conhecimento do homem seria muito mais avançado. Lucas jamais viu Jesus, mas estava certo de que Ele era o médico dos médicos. Tudo quanto está escrito em seu Evangelho foi adquirido através de fontes, ouvindo testemunhas como a mãe de Cristo e os seus discípulos. Essa história é relatada no romance Médico de Homens e de Almas, de Taylor Caldwell.
Os opostos não são inimigos, são irmãos. A vida é uma chegada e uma despedida. Conforme o médico previra (o nome dele era André), naquela que seria a última visita, a cabeça de minha mãe caiu como um fruto em minhas mãos.