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Raquel Naveira

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Minha veia norte-fluminense aflorou ao reler o romance O Coronel e o Lobisomem, de José Cândido de Carvalho. O advogado, jornalista e escritor nasceu em Campos de Goytacazes, Rio de Janeiro, em 1914, mesma cidade do meu pai. José Cândido era filho de lavradores portugueses. Trabalhou numa usina de açúcar da região, assim como meu avô, Amílcar Pereira da Silva. Quantas recordações  folheando esse livro de puro realismo mágico, de esdrúxulos achados linguísticos. Como esquecer as frases memoráveis do Coronel Ponciano de Azevedo Furtado, artífice da palavra ágil, do humor ácido de luxuriante imaginação? Os casos contados com vivacidade e com direito a sereias, onças, rabos de saia e aparições do lobisomem. Ponciano vai envelhecendo, enlouquecendo, decaindo, ao deixar a fazenda centenária de sua infância pela cidade. É um narrador divertido, não confiável, que conta sua própria história, seus feitos de glória, justificando suas ações estapafúrdias.

Nesse cenário, encontro referências a lugares por onde passei: “O homenzinho das passagens, aparecido na porta do vagão, avisou: _ Campos! Campos dos Goytacazes!”; “Mais um aguardenteiro, com engenho de cachaça em Paus Amarelos”; “Fui ver o engenho na moagem das derradeiras canas”; “... um ventinho candeeiro de água, em modos de sul, varria o casarão”; “... e estabelecer casa em Niterói, no meio de gente instruída”; “Coronel, desembarcou em Campos uma francesada de amolecer um frade. Tudo de imbigo de fora”; “_ Vou a Campos a chamado dos doutores da Justiça; “Dona Esmeraldina relembrou as nascenças do traste. Vinha vindo de herança em herança, de uma gente fidalga existida em outroras muito afastados: _ Os Barbalhos de Macaé, aparentados de Nogueira.”

Fechei os olhos. Lá estava eu, criança em Macaé, escoando entre os dedos os grãos amarelos da praia de Imbetiba, pertinho da casa de meus avós. O voo das gaivotas em direção ao Pico do Frade e às ilhas de um arquipélago distante, iluminado por um farol.

Íamos depois passar algum tempo em Quissamã, região onde desde o século XVIII se cultivava cana-de-açúcar. Era forte o cheiro de vinhoto e bagaço da usina em que meu avô trabalhou toda a vida. Restaram, depois da lenta desativação, máquinas a vapor, moendas, turbinas, desfibradores, prensas de espuma, balanças de pesagem, caldeiras. Pensar que em 1877, a primeira moagem das canas foi acompanhada por D. Pedro II e D. Teresa Cristina. O modelo cooperativo do Engenho Central funcionou a pleno vapor até 1920. Fazendas com luxuosos solares foram construídas na época do apogeu dos engenhos e depois abandonados, entrando em processo de desmoronamento, como a hipotética fazenda Sobradinho, de Simeão, pai do Coronel Ponciano do livro. Com meus tios e primos visitamos alguns daqueles casarões, com mobiliários antigos, camas altas com dosséis de tule, cadeiras de espaldares de madeira e forro de veludo puído, caminhos de palmeiras e baobás, praias selvagens, onde só se ouviam nossos gritos e o bater das asas dos albatrozes.

O filme O Coronel e o Lobisomem, com direção de Maurício Frias e Selton Nello, no papel do Coronel Ponciano, teve como palco a fazenda Mandiquera, em Quissamã. Uma propriedade histórica, símbolo da riqueza da produção de açúcar.

Erguida em 1875, foi residência de Bento Carneiro da Silva, o Conde de Araruama. Daqueles tempos áureos da aristocracia imperial, podemos imaginar o jardim de inverno todo florido, o chafariz ao centro em forma de sereia, os corredores com pinturas, a capela com detalhes em ouro, os vitrais coloridos. Só imaginar, em meio à ruína. Como meu avô amou Quissamã! “Quissamã”... palavra angolana, explicava ele. Localidade perto de Luanda, origem dos negros vendidos no Brasil, numa terra entre o rio e o mar, a chamada “Freguesia do Furado”, cheia de brejos, canais e lagoas. Macaé-Quissamã-Campos-Carapebus, faixa onde viveram índios goytacazes e tupinambás, dizimados por expedições militares de portugueses.

Depois de uma carreira dedicada à administração financeira da usina e de criar com minha avó Iracema uma prole de oito filhos, na hora em que poderia descansar, meu avô se entregou à paixão pela política, alavancando obras como a construção de vários colégios (acreditava piamente no poder transformador da educação); a extensão da rede elétrica; o ensaibramento da estrada de Flexeiras; a reconstrução da ponte sobre o Canal Campos-Macaé; a edificação do Fórum e da Delegacia de Macaé.

Debruçado na janela de um trem mergulhado no passado, lá vai o Coronel Ponciano, personagem icônico de O Coronel e o Lobisomem. Herdou fazendas, mexeu com açúcar e com o mercado da Bolsa. Um tipo decadente, que representa uma estrutura arcaica, uma organização arcaica, que se diluiu na névoa do tempo. Por esses mesmos trilhos ficaram marcadas estas lembranças, que guardo da terra de meu avô.