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Raquel Naveira

Leda é uma personagem da mitologia grega.leda 1aef2

Uma bela princesa que se casou com o rei de Esparta, Tíndaro. Depois da noite de núpcias, ela se atirou nua num lago. Sua pele de seda logo chamou a atenção de Júpiter, o insaciável e poderoso deus olímpico. Sabendo que a recém-casada, fiel ao esposo, jamais aceitaria amá-lo, ele se transformou num cisne sedutor. Deslizou sobre a superfície lisa, ave branca, uraniana, masculina. A cabeça e o bico moveram-se com arrogância, determinação, audácia. Avançou veloz em direção a ela. Havia nele uma luz, a força de um poeta, de um bardo nórdico cantando juras de amor. Era o próprio Desejo feito asa e pluma. Quando Leda percebeu, ele já estava encostado, peito contra peito. Ela se ofereceu, tomada de susto e emoção. Pássaro e concha se fundiram, numa profusão de espuma. Algum tempo se passou e Leda, mulher/cisne, pôs dois ovos brilhantes, envoltos em sangue. Em cada ovo um imortal, filho do divino e um humano, filho da Terra. Pólux e Helena, os filhos de Júpiter. Castor e Clitemnestra, filhos de Tíndaro. Das cascas quebradas, eles espiavam o miserável planeta, em silêncio. Quantos artistas pintaram essa cena sensual! Leonardo da Vinci (1452-1519), Boucher (1703-1770), Corregio (1489-1534) e até Salvador Dalí (1904-1989) com sua impressionante e surreal “Leda Atômica”.

William Butler Yeats (1865-1939), o poeta, dramaturgo e místico irlandês, prêmio Nobel de Literatura, escreveu um célebre poema intitulado “Leda e o Cisne”, que possui inúmeras traduções para o português. Nele descreve a fúria do cisne diante da moça indefesa. Um golpe, um baque, as asas adejando sobre a presa vacilante, acariciando as suas ancas, o bico puxando os cabelos trançados, segurando-a em seu seio de glória emplumada. Súbito, ele a penetra num rompante brutal. Deixa a jovem caída, abandonada e lânguida. Muitos comentaram que se tratava também de um poema político. Leda subjugada por um imenso cisne representava a Irlanda dominada pela Inglaterra. O país independente não rompe facilmente os laços coloniais com o predador. As marcas, a fusão de corpos e culturas, são profundas. O ato do estupro acarreta consequências por gerações.

No comentado filme “A Filha Perdida”, drama psicológico e introspectivo, inspirado no livro da misteriosa escritora Elena Ferrante, a protagonista, Leda, uma professora universitária, estuda o mito e o poema de Yeats. Leda, magistralmente interpretada por Olívia Colman na maturidade e por Jessy Buckley quando jovem, está passando as férias sozinha no litoral italiano. Ali ela conhece uma mãe com sua pequena filha. Esse encontro desencadeia memórias dolorosas em Leda que, após se separar do marido, deixou as duas filhas com ele e partiu. Estava apaixonada por um catedrático que a fascinara pela inteligência e conhecimento. Um cisne, um druida vestido de branco, que a arrebatara falando sobre Yeats. Ela não resistiu, sucumbiu, Leda que era. Com o marido e as filhas eram o sufoco, o cansaço físico, as pesadas responsabilidades domésticas. Com o amante/cisne estavam a liberdade, a fuga da gaiola, a essência de musa, a felicidade de ser quem se é, a aventura num mundo que julgava maravilhoso (como se o mundo tivesse algo de bom).

O filme incomoda, constrange. Leda é antipática, angustiada, demasiado falha. A maternidade é posta em xeque: os filhos podem representar demandas intermináveis, obstáculos para uma mãe exausta, com outros interesses intelectuais, artísticos e eróticos.

Imaginamos a dor de seu marido e filhas. A rejeição humilhante, a raiva, o sentimento de abandono e menos-valia, o abismo, os traumas, os transtornos emocionais. Como recuperar a filha perdida? A boneca perdida? A infância roubada?

Como Leda, eu me banhava num lago. Veio um caçador e me surpreendeu. Apoderou-se de meu manto de plumas brancas. Casei-me com ele e dei-lhe filhos em partos com amor. Mas um dia, recuperarei minha roupagem de cisne e voarei ao céu.