Luiz Eduardo Pesce de Arruda
Dona Rosa, desde menina, aprendeu com a avó que olhar para um morador em situação de rua é como olhar para o espelho da própria vida. Basta que alguma tragédia se suceda – morte de um ente querido, perda da família, perda da casa, dependência de álcool ou drogas, associando-se a dor à solidão e à desesperança e qualquer um de nós pode vir a tornar-se um morador de rua.
Assim, na casa dela, sempre manteve um jogo completo – prato raso, prato fundo, copo, talheres e bandeja – reservado especialmente para atender moradores em situação de rua que pediam comida em sua porta.
Naquele tempo, a violência era menor, mas mesmo assim havia. E quando censurada pelo marido, pelos irmãos ou pelos filhos sobre o risco de atender moradores de rua no portão de sua casa, sempre lhes respondia evocando o valor da caridade e a mensagem de Cristo, segundo o Evangelho de Mateus: “O que fizestes a um dos menores destes meus irmãos a mim o fizestes”.
Naquele domingo, quatro da tarde, a campainha soou. O marido murmurou algo e nem se dignou a deixar o conforto do sofá, mas dona Rosa foi atender. Era um mendigo, muito sujo, repugnante até, pedindo comida. A família almoçara no clube da cidade e não havia comida pronta no fogão.
- Senhora, estou com fome. Pode me arrumar um prato de comida? – ele perguntou.
Dona Rosa estava cansada e queria sentar com o marido para ver TV. Ainda assim, explicou que a família almoçara fora e não havia comida feita. Mas se propôs a fazer um lanche:
- Senhora, me desculpe – sua voz tinha sofrimento e dignidade - mas não quero pão. As pessoas me dão pão, mas eu estou com fome de comida!
Dona Rosa parou, olhou para o mendigo que a encarou no fundo dos olhos. Os olhos da fome. Da fome de comida, não de um lanchinho. Olhos com um brilho que traduzia verdade. E algo inexplicável, que ela não conseguia decifrar, mas que a desconcertou:
- O senhor espere. Sente-se aqui na área que vou ver o que consigo.
- Senhora, estou cheirando mal. Fico aqui na calçada mesmo.
- Não me importa. Sente-se na área.
Ele, humildemente, aceitou.
Dona Rosa entrou, foi à geladeira e pôs mãos à obra. Esquentou arroz e feijão, descongelou a carne moída com batata, fritou dois ovos. Colocou o prato na bandeja, guardanapo, talheres e mais um pão, uma banana e um copo de refrigerante. E levou ao homem.
Ele não agradeceu. Simplesmente mergulhou no prato com voracidade.
- Deixe o prato sobre a mesa quando acabar – ela recomendou. E entrou.
Instantes depois, a campainha tocou. Ela saiu. O prato estava vazio e o mendigo ajoelhado na escada, as mãos estendidas. E ele pediu em voz alta, olhando para o céu:
- Meu Pai amado, abençoe este lar. Abençoe e guarde cada um daqueles que mora aqui; Faça resplandecer o Seu rosto sobre eles e lhes conceda Tua graça. Volte para eles o Seu rosto e lhes dê a Paz! Tudo isso eu Lhe peço, porque sei que o Senhor me ouve.
E então levantou-se, olhou para ela, sorriu e partiu como havia chegado.
Dona Rosa sentiu como se um raio a tivesse atingido. E uma Paz, uma Paz imensa, como nunca sentira antes, inundou seu coração e se espalhou, desde sua nuca, como ondas de choque e calor percorrendo seu corpo.
Ela entrou em casa em êxtase. O marido percebeu algo diferente e se preocupou:
- Rosa, o que foi?
Ela sorriu:
- Hoje, Jesus visitou nosso lar!
São Paulo, 08 de junho de 2018, 19:37h
Luiz Eduardo Pesce Arruda, coronel da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo, é escritor, poeta e dramaturgo. Ocupa a cadeira nº 40 da Academia Cristã de Letras – ACL.