Recebi o livro Alinhavos do Tempo da poeta Lina Tâmega Peixoto, mineira de Cataguases, radicada em Brasília. Que linda capa. Um casarão antigo, amarelado, com quatro janelas altas na fachada. Encontro em versos a explicação: “Ainda existe./ As venezianas entrincheiram os olhos./ Preciso ver se as lembranças estão lá dentro/ resistentes ao corrosivo tempo.” E mais além: “Nesta casa onde o mundo não passa,/ há musgos de astros na janela do quarto.” Que atitude. A pessoa do lado de fora, voltando-se para dentro em busca de si mesma, de seu passado.
Intrigantes as janelas. Os olhos são as janelas da alma, dizem. Simbolizam a consciência e a percepção individual do mundo. Quando se abrem as janelas, o ar e a luz da verdade entram com força, penetram pelos limiares e fronteiras. Janelas de vista estreita, como aquelas do templo de Jerusalém, edificado por Salomão.
A palavra “janela” vem de “Jano”, o deus greco-romano de dois rostos, de duas portas. Janeiro é a porta do ano. Janelas, entradas e saídas enigmáticas, os prós e os contras. “Januella” é diminutivo de “janua”, “porta”. Sonho que sou Januária, louca castelã. Meu castelo tem muitas janelas, arcos, frestas, frinchas, claraboias, rosáceas circulares, de vidro colorido, por onde vejo o sol e as estrelas. Todas elas abrem e fecham, num jogo de lampejos, batentes e molduras. Delas faço contato com pátios internos e céus exteriores. Sou Januária, corro com os bolsos cheios de chaves que trancam e libertam os segredos das janelas.
Também Chico Buarque compôs uma cantiga, no início de sua carreira, uma homenagem a Januária. Januária que madruga na janela da casinha à beira-mar, penteando os cabelos, indiferente aos homens que se encantam com sua beleza e graça, antes de partirem para o oceano com suas redes, entre promessas de pescas e tempestades. Vida e morte. Velas ao vento.
“Janela Indiscreta” é um filme de mistério, um dos melhores do Mestre do Terror, Alfred Hitchcock. Depois de quebrar uma perna fotografando um acidente numa corrida de carro, Jeff (James Stewart), um fotógrafo profissional, está confinado a uma cadeira de rodas em seu apartamento. Sua janela dos fundos dá para um pátio de onde observa com binóculo as janelas dos vizinhos. A namorada de Jeff, Lisa (a deslumbrante Grace Kelly) o visita regularmente. Uma noite, entre raios e trovões, Jeff ouve gritos e vidros quebrando. Percebe que a mulher desapareceu de seu campo de visão. Mais tarde, o marido limpa uma faca e um serrote. Fica então convencido de que testemunhara um assassinato. Um cão é encontrado morto no jardim. As pessoas debruçam-se em suas janelas para conferir o que está acontecendo, exceto o suposto assassino, que fuma silencioso um charuto na penumbra. Lisa coloca um bilhete de acusação sob a porta do homem. Entra no apartamento por uma janela aberta e é perseguida pelo assassino, que finalmente descobre Jeff na janela da frente. O assassino vai até o apartamento de Jeff e o empurra pela janela. Chegam os agentes da polícia, salvam Jeff e Lisa e prendem o assassino. Tudo volta ao normal. Emocionante, divertido, o filme traz à tona um aspecto sombrio do voyeurismo: o nosso desejo de que coisas terríveis aconteçam para as pessoas.
Funciona como uma espécie de catarse. De libertação de nossos próprios fardos e tragédias. Somos nós mesmos nos expondo naquela janela indiscreta, espionando e examinando a vida dos outros. Afinal, quem se entrega às mórbidas curiosidades sofre as consequências.
André Vicente Gonçalves, um fotógrafo português, criou o projeto “Janelas do Mundo”. Percorreu países como Itália, Romênia, Espanha, Holanda e Portugal fotografando janelas que contam a história da arquitetura das casas e das cidades, a estética, a alma dos lugares. Vi suas janelas por uma janela da internet.
Lina, seus poemas são ricos e metafóricos. Exigem leitores concentrados. Pude ver você, reclinada na janela da fachada.