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Raquel Naveira

O Romantismo dominou na literatura brasileira de 1836 ao fim da década de 1870 e deixou fundas raízes no imaginário e na alma do brasileiro que sobrepõe o sentimento à razão, o coração ao cérebro.

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Um poeta romântico que sempre admirei, precursor da poesia social e da poesia abolicionista, gênio aflito e inspirado, foi Fagundes Varela. Ele nasceu em Santa Rita do Rio Claro, Rio de Janeiro, em 1841 e faleceu em Niterói, em 1875, de congestão cerebral. Teve uma infância nômade, pois o pai era juiz. Já rapaz, procura São Paulo e ingressa na Faculdade de Direito. Casa-se com Alice Luande, filha do dono de um circo. No ano seguinte, morre-lhe o primeiro filho, Emiliano, para quem dedica o poema “Cântico do Calvário”, a mais bela e perfeita elegia escrita em língua portuguesa. Entrega-se ao álcool e à vida boêmia. Morre-lhe a esposa. Abandona os estudos e passa a viver de fazenda em fazenda e pelas cidades próximas à sua cidade natal. Nem o segundo casamento com a prima Belisária o corrige.

O poeta de vida ingrata foi insuperável como paisagista. Seus motivos ligados à natureza vão dos grandiosos como o mar, as serras, o Amazonas, aos mais rústicos como o mato virgem, o brejo, o bafo do sertão, a choça, a viola do tropeiro, passando pelos mais delicados como o sabiá, a rola, a borboleta, o vaga-lume. Como esquecer o poema em que Fagundes Varela louva a beleza da flor do maracujá?

Cresci ouvindo meu avô dizer que a flor mais linda era a flor do maracujá, ele, português sensível e culto, que copiava poemas com caneta-tinteiro numa caderneta de capa cinza. Transcrevo as duas primeiras estrofes do poema “A Flor do Maracujá”, de Fagundes Varela:

Pelas rosas, pelos lírios,
Pelas abelhas, sinhá,
Pelas notas mais chorosas
Do canto do sabiá,
Pelo cálice de angústias
Da flor do marcacujá!

 Pelos jasmins, pelo goivo,
Pelo agreste manacá,
Pelas gotas de sereno
Nas folhas do gravatá,
Pela coroa de espinhos
Da flor do maracujá!

Na minha casa havia uma trepadeira linda, coberta de flores de maracujá, que se abriam em perfume e miasmas lilases. Como iria dar uma aula sobre Fagundes Varela, preparei uma surpresa para os meus alunos: uma caixa onde recolhi algumas flores do maracujazeiro. Depois de lermos o poema, entreguei a eles as flores e pedi para que as observassem, que sentissem o seu cheiro adstringente, que conferissem sua coroa de franjas, suas chagas místicas. Foi maravilhoso! Sinestésico! Atingimos a essência dessa flor e o mistério da Poesia.

Recebi depois a resenha do jornalista José Nêumanne Pinto em que ele comentava sobre o livro Fagundes Varela-Melhores Poemas, seleção do poeta e crítico literário, Antonio Carlos Secchin, editora Global. Nêumanne explicava que Secchin, da Academia Brasileira de Letras, estava prestando um serviço inestimável à memória de Fagundes Varela. A obra de Varela ficou espremida entre o fulgor dos antecessores Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias e do genial sucessor, Castro Alves. Varela passou a ser julgado poeta de pouca intensidade. Julgamento injusto e reducionista, pois Varela representou uma voz de autonomia e inconformação nos quadros de nosso romantismo, com instantes inigualáveis de ascensão e pressão lírica. Sofreu em alta tensão todas as experiências, fazendo com que cada transe de sua vida assumisse tonalidades puras e extremas. “O que Secchin fez é digno de nota”, comentava Nêumanne, pois percebeu na poesia de Varela “a mais complexa construção literária do Romantismo”. Secchin resgatou um poeta importante “nesta era da insensibilidade crônica e do imediatismo consumista e comodista burguês”.

Ser poeta é estar antenado a um inconsciente coletivo, a ondas de esforço energético. Como poderia imaginar diante do muro florido e dos frutos amarelos do maracujá que tantas pessoas estavam se lembrando de Fagundes Varela, dos seus cantos sombrios e potentes?

Escrevi então meu poema-homenagem à FLOR DO MARACUJÁ:

A trepadeira cobre todo o muro
E, à tardinha,
Antes do sol se pôr,
Abre-se, misteriosa
E mística,
A flor do maracujá:
Pétalas verdes por fora,
Brancas por dentro,
No centro, uma coroa de franjas
Sobre a mancha roxa,
De sangue azul macerado.

Como é bela a flor do maracujá!
O poeta romântico
Cantou-a em rimas em “a”,
Limito-me a admirá-la
Com o coração doído
E um leve arfar.

Zum, zum...
Abelhas negras
Pousam sobre as folhas
E preparam os frutos
Cheios de polpa amarela,
Poderoso sedativo
Que acalma os nervos
Como dose de rum.

Nessa mistura de mormaço e poente
A flor do maracujá
Dá impressão de sofrimento,
De êxtase,
De amor ardente;
É, provavelmente,
A flor de Romeu e Julieta,
Do martírio de Cristo,
Do manto espiritual do poeta.

A flor do maracujá
Excita,
Atrai,
Cálice de vinho
Por onde escorrem
Lágrimas violetas.

A flor do maracujá é tão bela
Que me faz suspirar
De tristeza,
Inexplicável padecimento
De quem é sempre incompleta.