Raquel Naveira
Nascida e criada em Mato Grosso do Sul, sempre ouvi comentários sobre o significado da palavra “fazenda”: vem de “fazer”, de “coisas que devem ser feitas”. E assim é a lida na fazenda: há que se arar a terra; preparar o solo com adubo para a lavoura; produzir leite e queijo; realizar reformas nas cercas e nos currais; criar gado; edificar casas; lançar os alicerces dos celeiros; operar tratores e máquinas; replantar o pasto; organizar as colheitas; perpetuar os frutos entre sóis, luas, chuvas e estiagens. O fazendeiro seria o dono, o criador, o gestor, uma espécie de pai. O que dá existência à própria vida da fazenda.
Muitas fazendas preencheram o meu imaginário, em andanças familiares por cidades como Campo Grande, Bela Vista, Jardim e Miranda. Lembro-me de imensas plantações de arroz; de queimadas, o fogo lambendo o solo e retorcendo os arbustos; de áreas verdes alagadas de azul; de campos de vacaria; de riachos cercados de caules de melancias; de moinhos socando farinha de mandioca; de porcos enormes, os cachaços, atravessando o capim de braquiária; de abacaxis e caraguatás explodindo suas setas, flores e espinhos. Essas fazendas de certo modo me pertencem.
Por isso não me surpreendi com o título Fazendeiro do Ar de um livro de poemas de Carlos Drummond de Andrade. Ah! Esse dom de juntar, numa lição que vem da antiga Arte Poética de Horácio, palavras comuns e torná-las expressões novas, magníficas. Fazendeiro... do Ar. Lindo. Sou também uma espécie de “fazendeira do ar”, desse ar de fazenda que envolve minha cidade.
Vejo-me por um instante sentada ao lado da estátua de Drummond, num banco de pedra à beira-mar. Ele me diz que está observando o sol baixar, a terra perdendo o lume, formando prismas de uma joia absurda de beleza. Penso com ternura: _ Ele tinha fazenda em Minas Gerais, ferro nas veias e na alma. Voou para longe, para perto do oceano, virou funcionário público, fazendeiro do ar.
Outro poeta, fazendeiro, gerador de versos, trabalhador de palavras, que também vai virar estátua de avenida, foi Manoel de Barros. O seu livro Pré-Coisas: roteiro para uma excursão poética no Pantanal, que mistura prosa e poesia, é um dos que melhor retratam o universo das fazendas, do ermo onde ele se manteve. Apresenta sua terra, Corumbá, a Cidade Branca, com orgulho, viajando de lancha ao encontro de si mesmo, de seu personagem, de seu alter-ego, num “rio Paraguai empeixado e cor de chumbo”, que “flui entre árvores com sono”. Sente o cheiro dos currais; vê casas nascendo; meninos recolhendo vacas no lusco-fusco, na semi-escuridão; depara-se com o agroval, onde arraias viram ninhos de larvas, cios, pólens e sêmens fervilhantes. Sente o “perfume de terra molhada que invade a fazenda”. Deleita-se com o mundo sem limites do pantanal cheio de cogumelos nos troncos e bagunça de periquitos nas ramagens. Ouve o ranger da carreta de bois puxando cordas tiradeiras. Conta que, assim como os cafeicultores paulistas iam passear e se cultivar em Paris, no sentido de obter cultura, assim também houve o caso daquele fazendeiro que, da Europa, enviou bilhete ao gerente do banco: “_ Venda carreta, bois do carro, cangas de boi”. “O boi cria o pantaneiro”, conclui melancólico. A sua faina de fazendeiro/fazedor de poemas é cheia “de nó pelas costas”, “pois tem que transfazer natureza.” Transfazer, entende?
Drummond, Manoel de Barros, sábios fazendeiros. Acreditemos como eles que é possível plantar sementes em solo fértil, regá-las, prover-lhes nutrientes de leitura e prazer, protegê-las das ervas daninhas do desprezo e da ignorância, entregá-las nas mãos de Deus e do Tempo. Milhões de fazendeiros/poetas vivem desse processo há séculos. Nem todas as sementes germinam nos solos e nas mentes. Mas vamos fazendo as coisas que devem ser feitas, pois elas são inerentes ao nosso ser. Poesia é um desejo de ser e de fazer.