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Raquel Naveira

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Passeio os olhos pelo mapa-múndi e fixo-me na África. Enorme continente. Aqui ao norte está o mar Mediterrâneo, separando-o da Europa; o estreito de Gibraltar e o Marrocos (lembrei-me do filme Casablanca); o canal de Suez na ponta do Mar Vermelho, aquele que se abriu para o povo hebreu; o oceano Índico banhando Moçambique, Tanganica e a Etiópia; o oceano Atlântico fazendo o contorno pela Mauritânia; Congo, Angola e África do Sul; o deserto do Saara pintado de bege areia; a Líbia onde aportou o herói Eneias, da Eneida, de Virgílio, em seu encontro com a trágica rainha Dido; o rio Nilo com seu delta descendo do Egito, passando pelo Sudão.

Atravesso mentalmente florestas de árvores altíssimas, baobás e  embondeiros. O perfume das acácias espalhado pelos ares. Elefantes, hipopótamos, rinocerontes e búfalos pelas savanas. Camelos no deserto com as bocas cheias de cactos. Girafas, zebras, gorilas, leões, leopardos, bandos de antílopes e hienas, serpentes venenosas. Imagino tribos nativas.

Grupos com roupas de colorido vivo, com desenhos complexos e coloridos. Selvagens com peças feitas de folhas secas de palmeiras e colares de ossos, marfins e conchas do mar. África dos fuscos, dos cartagineses, dos fenícios, dos árabes, dos gregos e dos romanos. África partilhada em colônias e protetorados entre as grandes potências europeias como Bélgica, Espanha, França, Inglaterra, Itália e Portugal. Quão recente é a independência. As guerras civis. As faxinas étnicas. Os campos de refugiados. África complexa, misteriosa, mergulhada em sangue, carvão e diamantes.

Pego o globo entre os dedos: foi daqui que saíram os primeiros negros escravizados. A coroa portuguesa reservou para si a venda dos africanos. A descoberta da América abriu um campo vastíssimo para o braço escravo. No Brasil, o tráfico teve início em 1526, desenvolvendo-se graças à necessidade de mão-de-obra para a lavoura da cana-de-açúcar.

Com a exploração das minas de ouro, aumentou a procura de escravo africanos, sendo o país abastecido, sobretudo, através do verdadeiro entreposto humano instalado pelos holandeses na costa da Mina. Calcula-se que até 1850, tenham sido transportados da África doze milhões de escravos, dos quais um quarto para o Brasil. Grande foi o número de africanos mortos em consequência dos massacres a que eram submetidas populações inteiras. O transporte era feito em condições terríveis, sofrendo os escraviados fome e sede nos chamados navios negreiros. No entanto, com as novas condições econômicas no mundo, declinava o regime de escravidão. Crescia o movimento abolicionista. Portugal decretou em 1836, após forte pressão inglesa, a extinção do tráfico negreiro. O movimento abolicionista sustentou uma luta prolongada contra o regime da escravidão.

Em 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel promulgou a Lei Áurea, que extinguia a escravidão em todo o território brasileiro.

O poeta Antônio Frederico CASTRO ALVES foi conhecido como o Poeta dos Escravos. Nasceu em 1847 na Bahia e faleceu jovem em Salvador, em 1871, de tuberculose. O aclamado orador foi corajoso defensor dos princípios de liberdade. Defendeu com versos inflamados os escravizados, revelando a miséria física e moral em que eram obrigados a viver. Seus versos continuam atuais, pois desfraldam a bandeira da liberdade:

Cai, orvalho, de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.

A 11 de agosto de 1865, aconteceu a abertura solene das aulas anuais do Ginásio. A sociedade pernambucana estava reunida no salão nobre para assistirem aos discursos das autoridades, quando ouviram a oratória inflamada de Castro Alves. Estrofe após estrofe, o corajoso poeta mostra as disparidades sociais e injustiças. As imagens são cada vez mais arrojadas, expondo a violência do sistema.

Deus! Ó Deus! Onde estás que não respondes?
Em que mundo, em que estrela tu t’escondes?

Era o poema Vozes d’África, voes que lamentavam, gemiam e bradavam a dor do cativeiro. O poeta continuou a protestar nos comícios republicanos. Até que no dia 7 de setembro do mesmo ano, o poeta declamou O Navio Negreiro:

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Aplausos e vivas. Castro Alves foi carregado pelas ruas de Salvador. Que cena incrível.

Amo Castro Alves desde minha adolescência. Vejo-o com seu paletó de casimira inglesa, seu chapéu gelô, a capa negra de vampiro, olhando-se de alto a baixo no espelho. Era moço, belo e idealista. Em homenagem a ele, escrevi:

Antônio, não me leves a mal,
Hoje meu coração palpita sob a renda
do vestido,
Meus lábios tremem como rosa ao vento,
Minhas mãos não acompanham o
pensamento
Neste ir e vir de mergulhar a pena
no tinteiro.
Antônio, não me leves a mal;
Hoje, na missa, não pude ouvir as
palavras do vigário,
Várias vezes atirei o lenço de
cambraia ao chão
Para esconder minha perturbação ao
vê-lo no camarote,
Lindo como aquela imagem de
São Sebastião.
Antônio, não me leves a mal,
Hoje, pensando em Joãozinho, o negrinho
que te entrega esta carta,
Desejei que ele fosse dono de seu destino
E, no mercado de escravos, compadeci-me
de uma mulher negra,
Agarrada ao filhinho, já sem esperança.
Antônio, não me leves a mal,
Hoje, na praça, sob o sol,
Imaginei pessoas reunidas,
Elegendo seus governantes,
Expondo quadros,
Proferindo poemas.
Antônio, não me leves a mal,
Prendem-me neste quarto,
Junto ao baú de enxoval,
À roda de fiar,
À ânfora de lavanda suave.
Antônio, não me leves a mal,
Hoje sonhei com minha própria
liberdade,
Vontade de beijar tua cabeleira negra
Como as asas de graúna,
Acalentar-te nos meus braços
Como se fosses uma criança tola.
Antônio, não me leves a mal,
Mas hoje, não posso ficar longe de ti.

Coloco de volta o globo entre os livros da estante e ouço a voz personificada da África na poesia de Castro Alves:

Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos- alimária do universo,
Eu- pasto universal.