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Este conto - apenas uma história de Natal, foi editado em um livreto pela editora Metaprint em 2016. Agradeço muito ao professor Vilas Boas, da PROPM, que obteve o apoio da Universidade Adventista para a edição.luiz eduardo pesce

O prefácio foi um presente do coronel Camilo e eu dediquei o conto para dona Rosinha, que me ensinou a amar o Natal; Para a tia Lú, pelo amor incondicional e para Marcinha, Rodrigo e Lucca, que renovaram minha vida.

A partir de hoje, vou publicar o conto em capítulos, para que vocês possam - se quiserem - fazer desse despretensioso livrinho uma leitura em família para o Natal. Esperança e amor: é nisso que se resume a mensagem do conto.

A quem quiser me honrar com a leitura,espero que possa fazer do seu Natal um momento de paz e muita esperança.

Abs - Arruda

 

A LUZ DE BELÉM - OU APENAS UMA HISTORIA DE NATAL

O anjo anuncia o nascimento de Cristo aos pastores:

“Não tenham medo. Eis que vos trago boas novas, que serão de grande alegria para todo o povo: Hoje, na cidade de Davi, vos nasceu o Salvador, que é o Cristo, o Senhor”. Evangelho de Jesus Cristo segundo São Lucas, 2, 10 e 11.

24 de dezembro, nove horas da manhã

Véspera de Natal.O apartamento, em um prédio entregue pela construtora há menos de três anos, tinha sido recentemente alugado pelo médico.

O edifício, de linhas modernas, com amplas sacadas, jardim e área de esportes, fora erigido no terreno do casarão onde outrora residira uma família, em um bairro de classe média.

Em meio ao concreto e ao asfalto, o bairro, por um fenômeno que nem mesmo os moradores antigos conseguiam explicar, se preservara arborizado e como era dotado de muitas alternativas de serviços, a vida por ali era confortável.

O bairro não ficava muito distante do centro, permitindo assim que as pessoas se deslocassem com certa facilidade para qualquer ponto da cidade.Como o apartamento tinha apenas um dormitório, a maior parte dos residentes era composta por jovens que nasceram e cresceram no bairro e que resolveram se mudar da casa dos pais, ou pessoas recém-chegadas no bairro, vindas de outros bairros ou cidades: eram solteiros, descasados, jovens casais ainda sem filhos.

Ou idosos. Dispensados do encargo de criar suas crianças, que haviam se tornado adultos e que agora seguiam seus próprios destinos, desfrutavam as manhãs ensolaradas a passear pelas calçadas com seus cães, parando de pouco em pouco para trocar uma palavra com o porteiro, a senhora do mercado ou com algum vizinho.

O apartamento de Cassiano era imaculadamente branco. Uma vez por semana, Dona Zuleide, uma senhora que Cassiano amava como sendo membro de sua família, fazia a limpeza do espaço e falava com ela mesma, tentando entender, inconformada, como um patrão como aquele, que queria como a um filho, bonitão, bem sucedido e com um ótimo coração, podia continuar vivendo sozinho.

A única conclusão possível para ela era cristalina como as águas das Caldas do Jorro, no sertão da Bahia, onde nascera 60 anos atrás:- Essas meninas são mesmo umas lesas... abestadas...pensava, enquanto limpava a geladeira, jogando fora os muitos restos de comida congelada que se acumulavam no dia a dia de alguém que tinha a agenda tão louca como a do doutor.

Decoração despojada, tinha estantes repletas de livros e pequenos objetos de arte, lembranças de viagens passadas. A decoração falava por si só: tratava-se do apartamento de um homem descasado, que pouco parava em casa. Ao fundo da sala, uma janela com sacada permitia contemplar a cidade, os alguns bairros distantes e o centro, com sua concentração de edifícios. Essa sacada era o lugar predileto de Cassiano. Às vezes, de folga e sem nada para fazer, aninhava-se na rede e assistia o pôr do sol e a reação da cidade que, janela por janela, se iluminava lentamente:-

Cada um desses milhões de pontos de luz que se acende, uma história de vida, um universo completo – pensava Cassiano, antes de fechar os olhos, balouçando preguiçosamente e tentando dormir um raro sono sem pesadelos.Depois da separação, indesejada e traumática, Cassiano procurou um imóvel com essas características, que ficasse próximo ao hospital público onde trabalhava.

Sua escala no hospital era apertada, pois faltavam médicos.Quando não estava hospital, estava normalmente voando feito um bólido pelas ruas congestionadas, a bordo de uma Unidade de Suporte Avançado do Serviço de Resgate do Corpo de Bombeiros, para tentar preservar a vida de algum motociclista, arrebentado depois de colidir com um ônibus ou de algum velhinho, atropelado por um condutor imprudente.Cassiano não se importava muito com seu ritmo de vida estressante e a baixa remuneração, especialmente se comparada com a dos colegas que escolheram trabalhar em hospitais e clínicas particulares.Quanto mais tempo pudesse passar no trabalho, pensava, menos ficaria se martirizando, tentando entender os muitos porquês sem resposta, que levaram à ruina do seu casamento com Carol que, durante oito anos - ele acreditou realmente nisso - fosse durar para sempre.Até que o distanciamento do cotidiano, o esfriamento da relação e a revelação de que Cassiano havia se encantado por uma colega da R2, com quem mantivera um único encontro secreto, movido a paixão e sexo, levaram seu casamento à bancarrota. Assim, do dia para a noite, tão simplesmente.Carol, estimulada por sua mãe, dona Eponina, uma paulista quatrocentona milionária, fina e esnobe, não queria ver Cassiano nem pintado de ouro.

E essa distância o torturava, especialmente porque o impedia de ver Kayan com frequência.O filho de sete anos idolatrava o pai, mas a avó, que sempre fora contrária ao casamento da filha com um rapaz vindo de uma família de classe média do interior, fazia o possível para envenenar a relação deles e impedir que se encontrassem.

E isso arrasava Cassiano.Desde a separação, seus pais, que moravam longe, e seus amigos mais próximos, se preocupavam com o fato de Cassiano apresentar alguns sintomas de depressão.

Engordara quase dez quilos e seus cabelos, em poucos meses, ganharam tons grisalhos. Deixara de correr diariamente pelo parque próximo e só aparecia ocasionalmente, às sextas feiras, para jogar bola com os colegas na Atlética da faculdade.

Entretanto, Cassiano ainda era um rapaz bonito e muitas colegas se encantavam com sua atenção e seu sorriso cativante. Quando elas se encontravam para tomar um chope, um dos assuntos recorrentes era de que algumas delas se disporiam alegremente a consolá-lo, desde que ele acenasse com o mais leve sinal. Mas ele parecia nunca querer começar de novo.Cassiano, por essa época, já era formado há dez anos.

Querido e respeitado entre os médicos que o conheciam, sempre que se reunia com a turma da faculdade tornava-se motivo de chacota dos amigos, com os quais estudou em uma prestigiosa escola de medicina, por sua opção pelos pacientes mais pobres, que manifestara desde sua primeira aula de anatomia, no primeiro ano do curso:- Somos todos iguais, esta estrutura pertenceu a um indigente mas poderia ser o corpo de um magnata! – disse o professor.

E Cassiano, fascinado, repetiu a máxima aos colegas do grupo de estudos.Os adolescentes se divertiram com a paixão de Cassiano:- Ah, tá! - riam e comentavam:- Só você, Cassiano, para ter uma idéia dessas... Acho que você cheirou uma overdose de formol e está de nóia...ou então é comunista! Desde esse dia, seu apelido na turma nunca mais o deixou: Camarada.No começo ele rateou um pouco. Mas depois acabou aceitando de boa e ele mesmo se nominava assim.

Muitos de seus colegas, ao decidirem os rumos da carreira na hora de escolher a especialização, optaram por caminhos mais suaves e muito mais lucrativos.Alguns escolheram a área em que atuariam por vocação. Normalmente faziam carreira acadêmica em paralelo, em sua ânsia de aprender e descobrir sempre mais, para poder partilhar com o mundo maneiras de minorar o sofrimento do próximo.

Eram os menos apegados aos bens materiais, e, por ironia do destino, eram os mais bem sucedidos, pois exerciam a medicina por amor.

Mesmo instalados em ricos consultórios, sempre reservavam parcela do seu tempo para atender estudantes com suas eternas dúvidas ou pacientes que não podiam pagar.

E o resultado financeiro, que os fazia alcançar um bom padrão de vida, era só uma consequência.Outros, simplesmente, definiam sua carreira pelo dinheiro e pelo status. Eram normalmente aqueles que escolheram a profissão por decisão dos pais ou depois de uma acurada análise das perspectivas materiais das várias carreiras.Normalmente, detestavam atender pobres. Eram os piores profissionais.

Esses, via de regra, viviam se estranhando com o Camarada, que desprezavam, mas que nunca tiveram a coragem moral de lhe dizer face a face.Alguns – bons e maus médicos - atuavam em consultórios psiquiátricos de clientela exclusiva, onde famílias de classe alta em desespero pagavam fortunas para livrar seus filhos da dependência das drogas.

Outros, cientes de que a vaidade sempre impulsionará as decisões das pessoas, montaram clínicas luxuosas de redução de obesidade ou cirurgia plástica, onde novas ricas, sem grandes desafios, buscavam ocupar o tempo turbinando os seios, removendo pneuzinhos inexistentes da cintura ou, no caso de jovens políticos ou executivos, fazendo implantes capilares ou lipoaspiração, na ânsia da juventude eterna.

A esses, ofereciam também a indicação de urologistas amigos, que prometiam o que a lei da gravidade insistia em lhes roubar.

Houve colegas de Cassiano que se especializaram em técnicas de fertilização humana e atuavam em consultórios ou centros de reprodução humana assistida. Ali, se vendia nuvens, se financiava esperança – sem nenhuma garantia de sucesso, mas sempre a peso de ouro - a casais ansiosos por superar a infertilidade e se tornarem pais.

O apartamento de Cassiano, em sua simplicidade clean, só dava lugar a um detalhe que, naquele momento, lhe conferia humanidade e calor: a decoração natalina.Instigado e ajudado por Lígia, sua colega de plantão, e pelo namorado dela, André, médico e colega de faculdade, que se preocupavam realmente com a recente solidão de Cassiano, o espaço recebera alguns adereços natalinos.A árvore, um pouco desproporcional, era grande e ia quase até o teto, com bolas multicores e uma lâmpada, simulando estrela, na ponta. Sobre o aparador, um presépio de barro, comovente em sua simplicidade, presente ingênuo que Cassiano recebera em Caruaru, quando ainda era estudante de medicina e participara como voluntário de um projeto de saúde, nas férias, para atender sertanejos do semiárido. E um porta-retrato, com fotos de uma mulher e de um menino. Ainda sobre o aparador, sobre uma manta multicolorida trazida de Cuzco, um aquário, onde um peixe dourado nadava preguiçosamente, sua cauda vermelha e translúcida fazendo curvas como um coral em movimento.

 

O carrilhão da sala, única herança material do avô, bateu nove horas da manhã. Cassiano, com a porta do banheiro aberta, deleitava-se com uma ducha bem forte, desfrutando ao fundo o som de um CD de músicas natalinas.

Talvez como reminiscência da infância feliz em lar cristão, esse era um hábito que Cassiano nunca abandonara, nem mesmo nos tempos de alojamento universitário. Em época natalina, ouvir músicas de Natal.O CD reproduzia a gravação de “Joy to the World”, de Watts.

A música ainda não tinha acabado quando o telefone começou a tocar, estridente e invasivo.

Cassiano, saindo do banho, entrou correndo na sala, varando a neblina produzida pelo vapor do chuveiro. Vinha enrolado em uma toalha e retirou o telefone do gancho. Aos seus pés ia se formando uma poça d'água.

- Alô?Cassiano sentou-se no sofá e foi secando o cabelo.

Do outro lado da linha, Lígia, no corredor do hospital, tentava se fazer ouvir, falando em seu aparelho celular.

O sinal ruim no interior do edifício e o ruído ambiente tornavam quase inaudíveis suas palavras.

Naquela sexta-feira o hospital regurgitava de gente. Pacientes pobres gemiam em macas que entulhavam os corredores, aguardando uma vaga na enfermaria. Policiais chegavam em viaturas com sirene aberta, trazendo esfaqueados, baleados, acidentados.

Uma maca ia, outra vinha, uma transportando um velho agonizante, de olhos vidrados e respiração estertorada, outra trazia uma mulher grávida, com o marido gritando ao lado, enquanto dois seguranças tentavam contê-lo e acalmá-lo:

- Tirem suas as mãos de mim, tô avisando! – ele ameaçava - Se não arrumarem lugar agora pra minha mulher ter o menino, eu não saio daqui sem matar um...

No ambiente tenso de emergências médicas, Lígia tentava se fazer ouvir:

- Camarada? Cassiano?- Sou eu... Lígia? E aí, tudo bem? Que foi?- Bom te ouvir, Camarada querido. Pensei que você já tivesse saído de viagem.

- Por pouco você não me pegava mais em casa. ‘Tava no banho....já ia sair...

- Você ainda vai viajar?

O rosto de Cassiano começou a se contrair, preocupado:

- Bom, eu pretendo... pretendia.

Por quê?Ligia hesitava e falava por rodeios:

- Você tá indo pra casa dos teus pais, né?

- É, tô indo. Este ano foi horrível, Lígia, você sabe, você acompanhou tudo....não vejo a hora que acabe....A amiga cerrou os olhos e mordeu os lábios:

- É, com essa história de separação e tudo, nem sei como é que tá tua cabeça pro Natal...Lígia se arrependeu, mas era tarde. Sabia que falara demais e fora invasiva:

- Desculpe, amigo!

Cassiano estava começando a ficar impaciente. Por que Lígia lhe telefonara?

- Tudo bem, menina. Aproveite você o Natal. Curta o André, que ele é gente boa. Mas o que aconteceu pra você me ligar agora?

- Cassiano, um abacaxi... enorme...Aquele plantonista novo, o tal de Jeferson, Walderson, Wanderson, não sei nem direito o nome do infeliz, ligou e disse simplesmente que sente muito mas que hoje não vai dar prá vir...Cassiano deu um sorrisinho irônico:

– Aquele saradão, que canta todas as enfermeiras e não ganha uma, né?

– Exato, aquele sem noção... O incrível Hulk bombado, aquele ridículo...ligou e avisou a enfermagem que o plantão hoje infelizmente não vai dar, que tá com outro compromisso....nem falou comigo, o covarde, porque senão eu é que me transformava em mulher maravilha pra dar umas bolachas naquele moleque cretino...irresponsável...

Cassiano achou engraçado e tentou imaginar a transformação da amiga, normalmente tão doce. Talvez, Cassiano conjecturou, por sua paciência e candura, ela optara pela pediatria.

Ele não se lembrava de havê-la visto irada assim antes, depois de mais de dez anos de amizade:

– Olha a pressão, Lígia! É, mas eu também sei o tipo de compromisso que esses caras arranjam pra fugir de um plantão de natal... Velejar em Ilhabela deve ser... ou jet-ski em Búzios talvez... Punta Cana...

Cassiano até se permitiu um riso, um riso de desalento.

E Lígia se esforçava por segurar o choro:- Irmão querido, não sei o que eu faço! Tem paciente aqui transbordando pelo ralo!Cassiano foi direto:

- Tá, Lígia, abre logo o jogo: o que eu tenho com isso? Sei lá, telefona prô chefe, pune o cara, demite. . .Isso é problema da direção, não é problema meu... nem seu !

- Cassiano, você me desculpe, cara, mas eu não posso ficar... Tô com quase trinta horas acordada, direto... não confio mais no meu reflexo. . . Daqui a pouco começo a alucinar, a fazer bobagem... Estou me sentindo confusa... é a privação do sono...

Cassiano não queria acreditar:

–Tá legal, tô entendendo, mas... e aí?

- Tentei todo mundo. Tá todo mundo fora, Cassiano. Só achei você. . .

Cassiano ria da situação surreal, como quem não podia acreditar no próprio azar:- Liginha, bonequinha, amiguinha, você não tá querendo fazer isso comigo... - ficou sério - está?Lígia sentia-se realmente constrangida:

– Não tenho pra quem pedir isso, Cassiano. . . Você é meu amigo e sabe que se não fosse essa emergência eu não ia te importunar, ainda mais hoje. . . mas estou precisando de você aqui, Cassiano...

Será que você segura essa? - ela pressentiu que iria chorar:

- mais essa?Cassiano passou a mão pelos cabelos e esfregou o rosto, desanimado:

- Fazer o que, né, Lígia? Esse seu pedido arrebentou com o meu Natal, amiga... mas estava escrito que esse Natal ia ser esse lixo mesmo. . . Segura as pontas que tô indo pra aí. . . Aguenta só mais um pouco. . .

Completou, quase falando para si mesmo:

- E também, esses coitados, empilhados aí no corredor, não tem culpa se nosso coleguinha fugiu do plantão de Natal. . . Tô chegando. . .

Lígia respirou aliviada. Sorria, enquanto seus olhos ficavam mareados de lágrimas:

- Eu te amo, camarada meu amigo!

Cassiano permitiu-se um sorriso triste quando respondeu, antes de desligar:

- Pelo menos alguém me ama. . . - Disse para si mesmo - Porque a Carol, segundo o advogado dela, não quer “proximidade”...

Firme, menina, tô chegando!

Enquanto Cassiano se deslocava pela cidade, envolta em clima de véspera de Natal, podia observar pessoas felizes que caminhavam tagarelando pelas ruas de comércio enquanto ultimavam as compras.Natal era um tempo feliz, pensou.

Mas, como flashes, cenas do hospital vinham à sua mente: os pacientes internados e de tão prostrados, incapazes mesmo de reclamar. As precariedades de materiais e de exames, o raio-X quebrado há três meses, a falta de fraldas geriátricas, o que infestava o ar com um permanente cheiro de urina, os colegas insensíveis que só sabiam reclamar do baixo salário e se permitiam assistir TV ou tirar uma soneca enquanto pessoas se contorciam de dor, aguardando seu parecer. As vidas que conseguiu salvar, os poucos pacientes que, ao terem alta, se lembraram de dizer:

- Obrigado, doutor.

E alguns – muito raramente - acrescentavam um voto que sempre comovia Cassiano:-DEUS lhe pague!

 

Oito horas da noite

Cassiano abriu a porta, totalmente esgotado.

Atirou a maleta e o estetoscópio na poltrona e jogou-se no sofá, bem desleixado, exausto emocionalmente. Enquanto olhava para a estrela da árvore, que piscava, fazia uma avaliação do turno, doze horas intensas de trabalho no hospital:

- Que dia miserável. . .Meu Deus, não é possível. . . Quanta gente sofrendo... E justo hoje, véspera de Natal. . . Gente que nasceu miserável... Vive como miserável. . . Passando fome, sem direito à dignidade nem na hora em que cai num hospital.

Lembrou-se do colega que havia faltado à escala:

- E o cara dá o cano no plantão pra ir para a praia, tomar sol. Irresponsável... vagabundo...

Cassiano deu um sorriso, olhando para o espelho. Ria de si mesmo:

- Bem, doutor Cassiano, enquanto houver idiotas no mundo feito o senhor, os espertos podem ir passar o Natal em Nova Iorque, em Gstadt, podem surfar no Havaí ou curtir as luzes de Gramado que tá tudo bem. . . O senhor segura o plantão pra eles. . . Anal, quem se importa com o senhor, né, doutor?

Seus pensamentos foram interrompidos pelo telefone:

– Alô... mãe? Não, mãe, não vai dar . . . tô chegando do trabalho agora. . .

A mãe disse algo que o irritou:

- Eu sei que eu combinei, mãe, mas a Senhora quer que eu faça o quê? Foi inesperado, mãe. . . Meu colega faltou e eu tive que cobrir o plantão. . . não deu tempo, mãe. Não tive como ligar. Cheguei no hospital e caiu uma avalanche de problemas pra que eu resolvesse. . .

Ela disse algo e ele voltou à calma e adotou um tom conciliador:

- Eu sei, mãezinha, não é falta de consideração, imagine! É que eu sou médico e simplesmente não deu. . . A senhora sabe como é minha vida...

Suas palavras, agora, denotavam um carinho imenso:

- Vai, não fica triste, que durante a semana eu arrumo um tempo e vou até aí, ver vocês.A mãe perguntou algo:

- Mãe, é evidente que eu amo vocês, que pergunta besta, mãe! Bom Natal pra Senhora, minha querida, e pro papai também. . .Bom Natal pra todos aí. Um beijo. . Feliz Natal. . . tchau.

Cassiano apertou o controle remoto e o som de “Adeste Fidelis”, bem triste, invadiu o ambiente.

Ele olhou lentamente para os objetos de decoração natalina.

Levantou-se e foi até a árvore e o aparador.

Mexeu na bola da árvore, olhou para a estrela no topo da árvore, mexeu nos animais do presépio, nas figuras humanas, no menino Jesus.

Cassiano deitou-se no chão e colocou pernas e pés apoiados no sofá.

Sentia-se angustiado, face à perspectiva da solidão, em plena noite de Natal.

Momentos depois, sentado no sofá, falava ao telefone:

- É claro, Jorge, é claro que eu entendo. Tua família tá toda aí, reunida. . . Claro, Natal é festa de família. . . tá, então, um abraço. Tchau.

Desligou o telefone e pegou o celular.

Acessou a agenda e começou a correr o dedo pelos contatos. Sorriu esperançoso quando se lembrou:

- Mas é claro. . . A Rita. . .

Discou, o telefone atendeu e entrou a mensagem da secretária eletrônica:

- Oi, aqui é a Rita. Por favor, deixe seu recado.

Cassiano estava frustrado:

- Droga, detesto falar com máquina.

Bateu o telefone.Continuou a pesquisa pela agenda telefônica.

– O Sérgio e a Bete. . . Foram meus pacientes. . . Faz mais de quatro anos. . . eu salvei a vida dela, na urgência, depois do acidente... bom, doutor, nesta hora vale tudo. . .

Discou. Esperou. No terceiro toque, alguém atendeu. Cassiano estava efusivo:

- Alô, Sérgio?

A voz de um homem irritado respondeu:

– Alô, quem é?

Cassiano estava espantado:

- Não é o Sérgio?

– Claro que não! Quem fala?

- Não é da casa da Bete?

- É sim, e aqui é o marido dela! Diz logo quem é. O que é que você quer com a minha mulher?

Cassiano foi fazer uma graça e deu um tremendo fora:

- Mas você não se chama Sérgio, o marido da Bete? Esqueceu de mim? O médico que atendeu sua esposa no acidente...

O outro estava fulo:

– Você tá me tirando? Eu não te conheço, cara!

Cassiano tentou contornar a sai justa:

- Desculpe. . . Entendi, meu amigo...

- Eu não sou teu amigo! Já não te disse que não te conheço, cara?

- Olha, me desculpe, eu não sabia que a Bete tinha casado de novo. É que. . .

- Dá linha, meu chapa. Tô vendo que você não tá legal, mas não me diz respeito.

Vou te dar um conselho: toma uma caixa de comprimido e dorme... ou então morre... Mas não estrague o Natal dos outros!

O som indicava o fim de chamada. O outro bateu o telefone em sua cara.

 

Dez e meia da noite

O anúncio do carrilhão era o único som, monótono, na sala fracamente iluminada.

Cassiano acordou de um sono leve e agitado.

Estava se sentindo arrasado:

- Pra onde eu vou?

Lá fora, há poucas quadras dali, ignorando o drama solitário de Cassiano, os membros do coral evangélico aqueciam as vozes, na ansiedade natural que precede a entrada no palco, para apresentar a “cantata de natal” à igreja.

O sacristão acendia compassadamente as velas no altar da paróquia, enquanto as famílias iam chegando para a missa de natal, espalhando-se pelos bancos e arrulhando felizes.

Nas casas, as salas de visita estavam cheias de pessoas que riam, falavam ao mesmo tempo, numa babel de felicidade.

E os restaurantes estavam repletos, as famílias reunidas para a ceia de natal.

Cassiano bateu na porta do apartamento vizinho.

A vizinha abriu uma fresta da porta, sem retirar a corrente de

Cassiano se apresentou:

- Boa noite! Olha, desculpe, a gente ainda não se conhece bem, eu sou o seu vizinho de frente e . . .

A vizinha estava claramente constrangida:

- Ah, oi... É você quem mora aí na frente, é?

Desculpe não me lembro de já ter encontrado com você no elevador ou nas reuniões de condomínio...prazer...

- É que houve um problema e . . .

O marido da vizinha veio até a porta:

- Pois não?

Sua atitude era educada, mas não era amigável.

A mulher recuou e desapareceu no apartamento.

Cassiano tentou sorrir:

- Boa noite! Eu sou o seu vizinho de frente.

Eu... eu tive um probleminha e . . .

- Sei. – o vizinho parecia medir Cassiano com o olhar, de alto a baixo

- Qual problema?

- É que eu fiquei de plantão no hospital e . . .

- O senhor é médico?

- É, eu sou. E agora . . .

O marido olhava insistentemente para dentro da casa, preocupado.

O tempo correndo, meia-noite chegando, convidados em casa e Cassiano na porta.

Olhou para o relógio:

- Desculpe a franqueza, mas todo mundo tem problemas, não é, doutor?

Cassiano anda tentou explicar:

- Bom, é que. . .

O marido estava ansioso para se livrar do vizinho inoportuno:

- Bom, se eu não posso ajudar, doutor, vai me dar licença. . . Estou com visitas e . . . está quase na hora. Com licença, Feliz Natal. Prazer e a gente se fala.

E fechou a porta na cara de Cassiano, antes de ouvir a resposta:

- Feliz Natal! - respondeu Cassiano para a porta fechada.

Sem saber porquê, veio à sua mente um dos contrassensos da cidade grande, que nunca conseguiu entender:

- Quando alguém lhe diz “a gente se fala”, quer dizer que eu não te procuro, você não me procura e a gente se fala quando se trombar de novo....

O som no interior do apartamento do vizinho era de festa.

Cassiano, cabisbaixo, voltou-se e entrou em seu apartamento

Dez para a meia-noite

A sala está iluminada por uma luz de penumbra. Cassiano, recostado no sofá, riu desolado:

- Acabou. . .Bom. . . a última tentativa. . . A última carga da Brigada Ligeira.

Simulou o toque de clarim e levantou-se, esgrimindo o ar como se manejasse uma espada imaginária, mas se desequilibrou e desabou sentado no sofá.

Pôs o telefone no colo e foi discando. Seu olhar fixou-se no porta-retrato sobre o aparador.

Uma voz feminina atendeu:

- Residência da família Camargo, boa noite!

Do outro lado, alguém tomou o telefone das mãos da governanta:

- Sim?

Cassiano podia imaginar a cena. A matriarca assumia o controle da situação:

- Dona Eponina... boa noite, como vai a senhora? Estou ligando pra desejar um feliz natal, pra vocês, pro Kayan e pra Carol. . .

Queria falar com meu filho...com ela. . . se a senhora me fizer a gentileza.

No lar dos Camargo, dona Eponina olhou para o menino que vinha correndo para atender o telefonema do pai.

Ela tapou o bocal do telefone com uma das mãos e abriu um estudado sorriso:

– Que foi, querido?

O menino estava ansioso:

– É o papai?

– Claro que não! Seu pai nunca liga... Porque iria ligar hoje? Só porque é Natal?

- Acho que meu pai não quer mais saber de mim – disse o menino, saindo triste e chutando um brinquedo caríssimo, que a avó lhe dera momentos antes.

Cassiano estava possesso:

- Como, não podem atender? Dona Eponina, eu quero falar com o meu filho, eu quero falar com a minha mulher! Tentou reorganizar os pensamentos em meio à fúria que o oprimia.

O silêncio gelado que fluía pelo telefone, exsudava superioridade e desprezo:

- Com a minha ex- mulher, com a mãe do meu filho. Será que a senhora podia fazer o favor de chamar a Carol pra mim? O Kayan?

Dona Eponina, criada para ser condessa do Império em um regime de há muito republicano, onde a nobreza era apenas uma lembrança distante, não se permitia expressar sentimentos em público, o que sempre lhe ensinaram ser uma manifestação piegas reservada à plebe.

Demonstrar fraqueza não era digno de uma descendente direta das Lisístratas de Piratininga, as mulheres que fecharam as portas dos lares e dos corações aos maridos, que voltavam abatidos e derrotados das Minas Gerais, obrigando-os a dar meia-volta e combater os emboabas que lhes roubaram as minas.

Isso fazia muito, muito tempo, mas a história era contada nos encontros da família Camargo como se tivesse ocorrido ontem.

– Olhe, Cassiano, hoje não é dia e nem hora pra discutir com você. E você sempre foi mesmo um marido ausente... Quanto a minha filha lamentava... Lembra o dia em que você deixou de comprar remédio para a amigdalite do Kayan só pra não chegar atrasado ao seu plantão?

Ela demonstrava hostilidade, disfarçada sob um tênue verniz de polimento social:

- Você sempre deu muito mais importância para aquele bando de pobres nojentos, para os seus bêbados e para as mundanas, com uma das quais, aliás, você saiu, só para refrescar sua memória, do que para sua família...

Você sabe o quanto participo da comunidade na igreja, ajudando os pobres, como sou espiritualizada, sabe que não me atenho a bens materiais, mas seja honesto: você nunca ganhou o suficiente para manter o padrão de vida de Carolina e agora quer o quê?

Por favor, preserve o mínimo de amor próprio e não nos incomode...

Cassiano sorriu ao se lembrar de como Dona Eponina frequentava a Igreja três vezes por semana, cumulava o padre de espórtulas e donativos generosos, mas também se recordava de como detestava os pobres que a assediavam quando deixava o templo.

- A senhora vai querer me dar uma lição de moral justo hoje? A senhora quer saber de verdade o que se passou no meu casamento com sua filha? Quer me ensinar a viver, é isso?

Eponina assumiu papel de vítima:

– Você, Cassiano... Sempre gentil com a ralé do seu pronto-socorro e sempre atrevido e grosseiro comigo... Deus é testemunha de que eu não mereço, de como fui e ainda sou tolerante e compreensiva com você...

- Desculpe. . . Não tem sido nada fácil. Eu, não quero ser grosseiro com a Senhora, eu só queria. . . eu tenho direito. . . eu. . .

Eponina sabia que vencera a investida e era hora de encerrar a conversa:

– Está bem, está bem, só que agora é muito tarde... por favor, respeite nossa privacidade e não nos importune mais...até logo...Bom Natal...Lembranças aos seus...

A maldita saudação social.

Desde quando ela se importara com os pais de Cassiano?

Ele olhou para o telefone. A mãe de Carol havia desligado.

Depositou o telefone lentamente na base, sobre a mesinha.

Ele tentou segurar, mas duas lágrimas escorreram de seus olhos, deslizando pela face marcada pela barba mal feita e crispada pela dor.

Segundo depois, o telefone tocou. Cassiano atendeu ansioso:

- Será que é o Kayan?

 

Segundo depois, o telefone tocou.

Cassiano atendeu ansioso:

- Será que é o Kayan?

Mas não seu filho.

Era o doutor Fernando, colega de faculdade, um milionário, filho de um grande investidor do petróleo, que conseguira se formar depois de quase dez anos e muitas DPs.

Não era um médico muito responsável – diziam seus colegas - mas tinha tanto dinheiro que não precisava de clientes. Era famoso na noite por esbanjar dinheiro com carrões, mulheres e festas regadas a álcool e drogas.

Talvez por ser tão diferente de Cassiano, Fernando gostava muito do colega, a quem via como um “alter ego”. Era assim que gostaria de ser, se tivesse caráter, pensava consigo mesmo. Mas ainda era cedo, queria curtir a vida antes de parar para pensar nessas questões filosóficas:

- E aí, Camarada, como vai essa vida de solteiro?

- Oi, Fernando... vou levando...

-Levando? Camarada, você é o cara mais feliz do mundo! Você tá alforriado! Livre! Quer que eu passe aí pra te buscar? Hoje vão inaugurar uma casa noturna que é um show. Tudo liberado, whisky do bom, o dono é meu amigo, fiz uns procedimentos numas meninas dele...

- Procedimentos? Que tipo de procedimentos?

A curiosidade médica levou Cassiano a indagar mesmo antes de pensar:

- Procedimentos, pô! Nesse trabalho não dá pra ter filho, ‘cê concorda?Cassiano sentiu náuseas. Parecia que ia vomitar.- Mas, olha, as meninas são todas escolhidas a dedo, vem do sul, só filé...

- Fernando, muito obrigado, vai firme mas eu vou ficar em casa...

-Que é isso, cara? Não fica na fossa, não!

Vamos sair e curtir a noite...

- Sabe o que é, hoje é Natal

- Você nunca deu bola pra isso, Camarada...Virou crente? Ou vai ser coroinha? Ririri...

A risada de Fernando era pornográfica, insuportável, pensou Cassiano.

- Vamos lá, eu passo ai pra te pegar, vamos detonar com a mulherada...

- Fernando, muito obrigado, vai você, eu não quero ir...

- Você não gosta mais de mulher, não?

Cassiano se irritou de verdade:

- Não, não sinto prazer nenhum em usar mulheres vulneráveis, Fernando. Nem em fazer amigos e ganhar dinheiro fazendo aborto... Acho que está na hora de você começar a pensar um pouco mais seriamente sobre isso também...

A linha do outro lado ficou em silêncio por um instante:

- Cassiano, você está muito estranho... Você não era de ficar me pagando moral.... eu te conheço bem, meu chapa...que que houve? Assumiu, é?

- Assumi, assumi que não quero mais que você me encha o saco! Por favor, tchau!

Desta vez, foi Cassiano quem bateu o telefone.

Fernando tentou retornar, mas Cassiano não atendeu.

Vazio e sem alternativa, chorou em silêncio, com as mãos cobrindo os olhos. Nunca se sentira tão só. Nunca seu choro tivera um sabor tão amargo.

Levantou a cabeça quando ouviu uma voz chamar seu nome. Estava são, não tinha bebido nada, como era possível aquilo?

A voz não era fruto de sua imaginação, sabia discernir muito bem, era uma voz masculina, cheia de amizade e compaixão, que sussurrava ao seu ouvido, como se alguém estivesse ali, muito próximo dele:

- Cassiano, pra que sofrer? Você não merece passar por isso...Você é uma boa pessoa... Vá até a janela, olhe para as estrelas no horizonte... O céu é o mar... escreva um bilhete pra todos esses canalhas, suba no parapeito e deixa o vento te levar... mergulhe e esqueça dos seus problemas...deixe tudo pra trás... É tão rápido, você nem vai sentir dor.... Acabe logo com tudo...

O Mal absoluto encontrara uma fissura e tentava, agora, penetrar a fortaleza. Sem violência. Pela sedução.

Cassiano hesitou. Aquilo nunca lhe acontecera antes. E, em um instante, voou até a aula de catecismo da professora Margarida, em sua pequena cidade, quando ainda tinha nove anos:

- A tentação... Todos somos tentados... Deus não nos livra da tentação. Temos, isso sim, é que pedir forças a Deus para superar nossas fraquezas e evitar cair na tentação. É exatamente isso que diz a oração que o Senhor nos ensinou.

Ela repetiu o trecho do “Pai Nosso”, mas com um vigor e uma emoção que Cassiano nunca havia ouvido – e nem sentido - antes:

- E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal.

A professora dava vida à explicação. Todos os olhos e as atenções estavam voltados para ela:

- O diabo é sedutor... é o príncipe da mentira...usa de meias verdades para confundir quem lhe der ouvidos.

Mas lembrem-se: Ele está no mundo com um único propósito: matar, roubar e destruir...

De uma gaveta escondida em seu subconsciente aflorou a cena da tentação de Cristo, levado pelo demônio ao ponto mais alto do templo:

- Tudo isto te darei, se prostrado me adorares.

A mesma tentação que levou milhões a ceder à corrupção, à violência, à ganância, ao desamor, a tirar a própria vida.

Um grito surdo emergiu de dentro de sua alma. Um grito selvagem, raivoso, primitivo:

- NÃÃÃÃO!

Os pensamentos se sucediam aos borbotões e sua pulsação estava acelerada:

- Tenho um filho para criar, tenho meus pais que me amam, tenho meus amigos, meus pacientes... Se afaste de mim... Vá embora...Eu amo a minha vida...

A voz se foi. A sala ficou em silêncio absoluto, como se o universo todo estivesse em compasso de espera.

E, no silêncio, ele orou, o que há muito não fazia.

Sentia-se fraco e impotente, quando a necessidade de buscar a Deus explodiu em seu peito, como nunca havia ocorrido antes em sua vida.

Foi uma oração sem fórmula nem regra, curta, um clamor de socorro angustiado, vindo do sentimento mais profundo de desamparo e solidão que ele jamais sentira:

- Deus, se o Senhor existe, por favor me ajude!!!!

 

O carrilhão começou a bater meia-noite. Era Natal.

Cassiano continuava sentado no sofá, na penumbra, banhado apenas pelas luzes que vinham da árvore.

Um flash de luz e o som de um pequeno estouro tiraram Cassiano de sua introspeção. Olhou para a árvore.

A lâmpada do topo, da estrela de Belém, havia se queimado.

– Natal... já é Natal. . .e eu... sozinho. . . e essa estrela tinha que queimar logo agora?

Cassiano tentou subir numa escada para trocar a lâmpada do topo da árvore.

Percebeu sua dificuldade, e sabia que isso ocorria porque, desde criança, sempre sofrera de acrofobia, o medo incontrolável de altura.

Veio à sua lembrança, como em um filme, o dia em que, quando tinha onze anos, o pai o levou até a plataforma de salto mais alta do clube.

Reacendeu-se nele o pavor que sentiu, menino, quando olhou para baixo e viu os azulejos minúsculos no fundo da piscina e a água que ondulava, oito metros abaixo.

Agarrou-se ao guarda-corpo de alumínio e então, sentou-se no piso antiderrapante, incapaz de caminhar até o trampolim.

Suas pernas tremiam em um ritmo incontrolável, ele suava profusamente, sua boca secou.

Cassiano nunca conseguiu esquecer a sensação de pânico, que o impedia de se mexer, enquanto os amigos riam dele.

O pai, depois de exortá-lo inutilmente a ser homem e saltar, teve de trazer o menino, humilhado e cheio de vergonha, de volta à segurança do solo, degrau por degrau.

Cassiano odiava subir em escadas e tentava controlar-se, falando consigo mesmo para ordenar as ações:

- Calma, doutor. . . tá chegando lá. . .só mais um pouquinho... devagar agora. .

Um passo em falso no degrau da escada e Cassiano desabou, indefeso, sobre o aparador, espatifando o aquário na queda.

Deitado sobre o tapete, zonzo da pancada contra o solo, permaneceu com os olhos fechados, em meio aos cacos do aquário, da água e do peixe dourado, que pulava no tapete, na ânsia por respirar.

De um ponto oculto de trás de seu braço direito escorria sangue, que foi se espalhando e tingindo o tapete de vermelho vivo

Cassiano corria contra o tempo, tentando chegar ao térreo pela escada de incêndio, o braço envolvido em uma toalha branca, que ia lentamente se empapando de sangue.

A presença da adrenalina e das endorfinas, derramadas na corrente sanguínea em altas doses como resposta ao trauma, agia para preservar a vida e fez o torpor causado pela queda desaparecer.

Cassiano não sentia dor.Mas sabia, por experiência profissional, que se não contivesse a hemorragia e buscasse imediato socorro médico, breve a perda de sangue se intensificaria, roubaria sua consciência, ele desmaiaria, entraria em choque hipovolêmico e por fim iria morrer.

Simples assim, alertou-o sua consciência analítica de médico do SAMU.

Cruzou o hall, todo enfeitado de luzes natalinas, onde ficava a mesa e a cadeira do porteiro que, naquela hora, estava sentado assistindo a um filme em uma pequena TV em preto e branco.

Ele percebeu a emergência estampada nos olhos de Cassiano e se levantou para acolher o médico, que cambaleou em sua direção:- Por favor, me ajuda. . .

O porteiro, ao invés de reagir à emergência ou entrar em pânico, o que seria muito previsível, sorriu, muito calmo, seus dentes brancos e perfeitos destacando-se no negro de sua pele.

– O que foi, doutor? Posso ajudar o senhor?

- Aciona o SAMU, rápido. Me cortei fundo, estou perdendo muito sangue, preciso de um hospital. Por favor, me ajuda. . .

O porteiro não se moveu:

- Posso ver seu braço, doutor?

Cassiano sabia da gravidade do quadro e começou a sentir náuseas,mau sinal que indicava pânico. Foi incisivo:

- Eu sou médico... chama o SAMU... agora!

Mas ao encarar fixamente o porteiro, sentiu de volta um olhar tão profundo, tão calmo, repleto de tanta compaixão e bondade que ficou desarmado.

Decididamente, não conseguiria se irritar com aquele funcionário:

- Olha... por favor...o corte é muito profundo. . .

A artéria (lembrou-se de que falava com um porteiro, que talvez nem conhecesse a palavra). . . o vidro cortou a veia, eu acho. . .

O porteiro mantinha-se em absoluta calma:

- Acho que não é tão grave assim, doutor. Posso dar uma olhada?

Cassiano começou a ficar incomodado com aquilo que julgou ser insolência do porteiro:

– Você tá brincando comigo, porteiro? - a palavra “porteiro” foi soletrada, pronunciada numa entonação que deixava bem claro qual a posição hierárquica do funcionário:

- Eu estou lhe dizendo que estou em risco de morte... Eu sou médico... Você quer discutir comigo?

Cassiano encarou de novo o porteiro.

Mas ele passava um olhar de tanta paz e confiança que Cassiano desistiu de brigar:

- Foi aqui, atrás do braço... Cuidado... tem uma hemorragia enorme aí...

O porteiro tocou o braço ferido e acalmou Cassiano:

- Mas é só um arranhão, doutor. Olha aí, até já parou de sangrar. . . Até cicatrizou... Nem precisa ir pro hospital. ... Está tudo bem com o senhor...

Cassiano contorceu-se e olhou para o braço, sem acreditar:

- Mas tinha uma hemorragia enorme, um talho fundo...

- Se tinha, não tem mais... Só tem um fiozinho de cicatriz...O senhor mesmo está vendo...

Cassiano olhou para o braço e para o porteiro.

Estava realmente admirado.

Para ser bem sincero, não estava entendendo absolutamente nada:

- Nunca eu me enganei assim antes ... acho que... acho que eu fiquei impressionado...

Estou mais acostumado a tratar dos outros, não de mim mesmo.

Juro que tinha visto um talho enorme, aí... Bom, está tudo bem...

Sorriu apaziguador:

-Acho que errei.

Emanuel devolveu o sorriso:

- Só Deus não erra, doutor. Quer que eu acompanhe o senhor até seu apartamento? Por segurança?

- Mas você vai abandonar a portaria, aí?

- Tem problema não, doutor. o prédio é seguro. É só por um minuto mesmo. .quem tinha que sair, já saiu. . . quem tinha de chegar, já chegou. . . e – quase em tom de confidência a um velho amigo, segredou:

- E quem tinha que nascer, já nasceu!

– Abandonar seu posto vai te dar uma dor de cabeça danada...

– O Regimento do prédio proíbe o funcionário de ajudar alguém que está em dificuldades?

Pois se até o samaritano ajudou seu inimigo galileu, logo eu, o porteiro, vou ser proibido de ajudar o doutor, que é amigo de todo mundo?...Oxi!

- Bom, nesse caso, vamos dar uma subida, que eu lhe pago um café. Meu presente de Natal!

Súbito, Cassiano estacou, desconfiado:

- Espera aí! Hoje não é a noite do seu Jacinto? Você é novo no prédio? Cadê o seu Jacinto?

- Ele tá bem, doutor! Estou cobrindo a folga dele. Sabe como é. Natal é noite santa. As pessoas querem passar em casa, com a família. Nem que seja num barraco, ou debaixo duma ponte. . .

Agora ele falava em um sussurro, quase confidenciando:

- Nem que seja num estábulo, no meio dos bichos. . . eu, quando andava pela minha terra com meus amigos, já dormi com a cabeça encostada até em pedra feito travesseiro...Viche...trabalhar aqui é bom demais...

Cassiano estava intrigado:

-Desculpe perguntar. Você não tem família?

- Todo mundo é meu irmão, doutor. Meus irmãos são todas as pessoas que fazem a vontade do bom Deus, que está no céu...

Disse e olhou para o alto, apontando com o dedo:

- Como é que você sabia que eu era doutor?

- O senhor está de branco. . . ou era médico, ou era dentista.

- É, você acertou. Eu sou médico. Meu nome é Cassiano. Prazer!

Cassiano estendeu a mão.

A toalha, ensanguentada pela hemorragia que agora parecia nunca ter ocorrido, caiu no chão.

O porteiro a recolheu com delicadeza, dobrou-a de modo que a face limpa ficasse exposta e a devolveu ao médico.

- Prazer, doutor! Eu sou o Emanuel.

E estendeu sua mão.

- Esse homem trabalha duro, pensou Cassiano quando lhe apertou a mão firme e calosa.

Juntos, lado a lado, subiam pelo elevador.

- E você, Emanuel? É daqui de São Paulo? De Minas? Do norte?

- Nada disso, doutor! Sou de muito mais longe! Minha terra não tem nada disso, não... tanto prédio. É só terra seca e pedra. . . a vida lá não é fácil, não...

Ah – seus olhos se iluminaram - mas lá também tem um lago enorme, lindo que é a peste... É de deixar qualquer açude no bolso...êta lago arretado prá dar peixe...

- Sua família, então, de onde é? De Alagoas, Pernambuco?

Emanuel sorriu:- Minha família, doutor? Minha família é o mundo. . .

A conversa foi interrompida pelo sinal sonoro do elevador e Cassiano anunciou:

- Chegamos!

Eles se sentaram no sofá. Cassiano preparou um café bem forte e, agora, ambos seguravam suas canecas, abraçando-as com as mãos.

 

Emanuel quebrou o silêncio:

E o senhor, doutor, feito eu, trabalhando até na véspera de Natal?

- Veja como são as coisas! Deu tudo errado. . . Eu estava na ilusão de viajar prá casa dos meus velhos, mas meu colega resolveu furar, não apareceu prá tirar o plantão, e eu tive que cobrir o hospital. . . coisas da vida de médico, acontece. Quem não aceita isso deve mudar de profissão enquanto é tempo...

Emanuel percebeu o sorriso triste no rosto do médico:

- O senhor me perdoe, mas eu sou meio ignorante.

Se o seu colega pôde faltar, porque o senhor não faltou também?O senhor sabe que isso não ia ser surpresa, doutor!

Quem já precisou ir a um hospital desses, perdido na periferia da cidade grande, sabe como faz falta, às vezes, um filho de Deus prá atender o infeliz que chega . . . pra esperar atendimento numa maca no corredor... pra dar banho no mendigo... pra consolar o que está condenado e não tem escapatória... pra trazer uma criancinha ao mundo...

Sorte desse povo que ainda tem gente como o senhor!

Cassiano riu, agora de si próprio:

- Os trouxas.... Sabe quanto, Emanuel, em ganhei pra tirar esse plantão extra de Natal?

Nem vou lhe dizer, mas não paga nem a gasolina pra ir até a casa dos meus pais...

Emanuel olhava fixamente para o médico:-

Mas...e a gratidão do povo que o senhor atendeu? E a dor que o senhor aliviou? Esse povo, agora mesmo, em casa, tá falando bem do senhor...

Emanuel colocou a mão em concha no ouvido e murmurou com os olhos fechados:

- Eu estou até escutando...dizem que o senhor é um homem bom, abençoado... Que quando o senhor toca na pessoa... É como um milagre... a dor alivia...

Abriu os olhos e encarou Cassiano com um sorriso:

-E o senhor não fica feliz com isso, não?

Cassiano nunca havia pensado naquilo. Permaneceu em silêncio:

- Não quero ensinar nada pr’um homem importante como o senhor, mas eu, no seu lugar, se eu também tivesse estudado numa faculdade, ia ser um homem muito feliz.

O senhor tem o Dom, doutor... O Dom de tirar a dor, de passar confiança, de fazer nascer de novo a fé nas pessoas...

Deus tem um carinho muito especial pelas pessoas de boa vontade, por gente que não tem vergonha de se esforçar por fazer o que é certo, o que é justo...

Depositou a xícara com café na mesa e apontou o dedo para Cassiano:

- Isso, dinheiro nenhum no mundo paga...

Cassiano olhou triste para o porteiro:

- Já dei muita cabeçada na vida, Emanuel...

Emanuel parecia não se abalar:

- Errar, todo mundo erra... as vezes, até, querendo acertar. Fazer o bem, isso é muito mais difícil: só faz o bem quem quer...

Cassiano acabou seu café:

- Acho que se esse Deus do qual você falou existisse, imaginando que ELE existisse de verdade, ele deu pra cada homem, pra cada mulher, uma missão muito especial . . . uma missão pessoal, que ninguém pode fazer pela gente.

Deu as ferramentas, deu a inteligência, prá uns deu dinheiro, pra outros deu poder, pra outras, deu beleza. . .Olhou para o porta-retrato, onde a ex-esposa lhe sorria, abraçada ao filho.

- Pra alguns - acho que são seus preferidos - dá uma família, dá filhos . . . E prá todo mundo ele dá uma cruz prá carregar . . . e só eu sei como pesa a minha . . .

Emanuel sorriu, tolerante:

- Será que o senhor sabe mesmo o peso de uma cruz ...mas de uma cruz de verdade mesmo, aquelas feitas de pau? Igual aquela onde, diz o povo, pregaram Nosso Senhor?-

Claro que eu sei, Emanuel. . .

- Mané. . . pode me chamar de Mané . . .

- Claro que eu sei, Mané. . .Minha vida, este ano, tô empurrando com a barriga. . . Foi o ano mais duro que eu já vivi . . . Você nem, acredita . . .

Emanuel comentou baixinho:

- A esposa e o seu menino, né, doutor?

Cassiano, surpreso, reagiu com rispidez:

- Quem lhe falou sobre isso?

- Tem um porta - retrato, ali em cima - disse Emanuel, apontando para o aparador. O senhor estava olhando para a foto. Adivinhei...

Cassiano não estava mais irritado. Estava, isso sim, admirado:

- Mané, você é um rapaz muito inteligente. . . Pega as coisas no ar . . .Parece que sabe de tudo!

E, pelo jeito como fala, acho que você também já sofreu muito.

Emanuel levantou-se do sofá e caminhou lentamente até a janela, olhando para a cidade, pensativo.

Estrelas pontilhavam a vidraça:

- Tenho cara de rapaz, mas não sou tão novo assim como pareço. Sofri muito, sim, doutor.

Mas, diferente do senhor, me acredite, nada do que me aconteceu foi contra minha vontade. . .

Mesmo o sofrimento - e olha que eu já sofrí, e ainda sofro às vezes, com a ingratidão do meu povo - eu aceitei como meu propósito. . . Foi preciso, ser assim. . .Eu sou pobre, doutor, eu nasci pra isso...

- Existe DEUS, Mané?

- O senhor acredita NELE?

Cassiano levantou-se e acionou o CD Player. A música que inundou a sala foi “Noite Feliz”.

- Sabe que eu não sei direito, Mané? Todo dia eu vejo paciente morrer na minha mão. . . É a AIDS, é o câncer, é a solidão, mães desesperadas que abandonam seus bebês, famílias que abandonam seus velhos no hospital, torcendo pra que morram logo pra ficar com a maldita herança...

Pacientes que não citam o nome dos filhos mas têm saudades dos seus cachorros...Me pedem pra acabar com o sofrimento deles, logo . . .

Eu nunca fiz isso, falo que jurei defender a vida, falo de esperança, procuro animar esse povo... Mas é difícil...

– Parece que não vai suportar, não é?

- Ai te digo, Mané. Nessas horas, sinceramente: não acredito NELE. . .

DEUS me perdoe, mas se ELE existisse, ia estar mais presente, aqui neste mundo, do lado da gente, e não ia permitir isso, Mané!

- Eu sei que, tem horas, que não é fácil pro senhor acreditar, sustentar sua fé, entender os planos de Deus... Afinal, o senhor é só um homem, doutor...

Cassiano se emocionou. Sua voz denotava revolta:

- Você já viu uma criança morrendo de câncer, Mané? De fome? De espancamento? De bala perdida? - . . . eu não posso . . . eu queria, mas não consigo...

Emanuel tocou levemente seu ombro:

- É muito difícil para um homem entender a vontade de DEUS, Seus planos, Sua justiça. . . Mas eu tenho certeza de que DEUS entende o senhor e lhe quer muito bem, doutor. . .

O senhor já salvou muita gente, já consolou muita gente, já perdeu tempo prá ouvir velho contar história. . .

Como aquela velhinha mendiga, que seus colegas chamavam de louca, mas que o senhor parou pra ouvir cantar “Oh mio babbino caro”, dentro do ônibus.

E ainda acho que até aplaudiu, o senhor se recorda?

Cassiano estava intrigado:- Parabéns, Mané. Seu sotaque italiano – riu - é perfeito... Isso . . realmente aconteceu, é verdade. Mas eu nem me lembrava e nunca contei pra ninguém . . , acho que só pra Carol...

Emanuel soltou uma gargalhada:

– Sotaque italiano? Eu, um quase analfabeto? Bondade do senhor!

Mas, dos seus causos... o povo não esquece... e vai passando pra frente.

Cheguei hoje no prédio, mas tenho amigos.

As notícias correm. . . E se o senhor, que é um homem tão importante, com anel no dedo, perde seu tempo pra me convidar, eu, um simples porteiro de prédio, pra conversar e pra tomar café na sua casa . . . eu, na hora, pensei comigo:

- Taí, Mané, esse doutor Cassiano é mesmo gente boa.

- Salvei muito menos gente do que eu queria, Mané . . .

Emanuel bebeu um gole da xícara:

- Vou tomar antes que esfrie! - Disse enquanto soprava o café.Mas, vou lhe dizer, não importa quantas pessoas o senhor conseguiu salvar. O senhor não é Deus, a vida não lhe pertence.

Essa é uma lição de humildade que muitos médicos como o senhor ainda precisam aprender... Procure encarar a realidade como fazem os judeus:

No Livro, eles dizem que quem salva uma vida salva o mundo inteiro. . .

Cassiano se acalmou:- Acho que escutei num filme de cinema. Acho que era - tentava se lembrar -

...A lista, a lista...

– De Schindler?

– Pois não é que foi isso mesmo? Mas até de cinema o senhor entende? Êta doutor inteligente que é só a peste! Eu lhe falo a verdade. Eu gosto demais de cinema...

Pena que é tão caro pra um porteiro...

- Tem hora, Mané, principalmente quando a gente é jovem médico, que a gente se acha realmente muito poderoso, senhor da vida e da morte.

Até perceber que a vida continua sendo um mistério como sempre foi, desde o início da humanidade, às vezes uma experiência cruel, às vezes comovente, mas que definitivamente escapa à nossa compreensão, mesmo com todo o avanço da ciência...

- Precisamos fazer a vontade DELE, não a nossa...- Os muçulmanos dizem isso –

Cassiano lembrou-se de uma passagem do Alcorão, que lera na faculdade.

Emanuel completou:

- Os muçulmanos dizem que ninguém merece entrar no paraíso . . . só aqueles que Allah quiser que entrem, os que praticarem o bem e, principalmente, os que forem submissos à vontade Dele. Bonito isso, é não?E como se confidenciasse:

- É verdade que eles acham que Jesus é só um grande profeta...Eles respeitam muito a Jesus, respeitam muito sua mãe, mas não acham que Ele é Filho de Deus, não... Mas Jesus... acho que ele lê o coração de cada um... só ELE pra julgar...o que eu sei é que ELE também ama muito os judeus...e os muçulmanos... e os ateus...

Cassiano estava pasmo:

- Mas onde você aprendeu essas coisas, Mané?

- Leio mal, mas gosto de ler nas madrugadas, quando estou sozinho na recepção, na guarita. E pra ser bem sincero com o senhor, sempre gostei de ler o Livro. . .Sabia que até já li o Livro pro meu povo ouvir, na igreja da minha cidade?

Cassiano escutava, hipnotizado:

- Mas, sabe de uma coisa, doutor? É muito engraçado. . Nomes diferentes, cerimônias diferentes, roupas, línguas . . .

Mas é incrível: todos os homens de boa vontade, que buscam a Verdade com o coração puro, acabam sempre chegando a DEUS . . . , ou seja lá o nome que queiram dar a ELE . . .

E por um caminho ou por outro, acabam tendo um encontro pessoal com ELE. Eu sei que é assim!

- Você acredita em DEUS, Mané?

- Difícil pra mim essa pergunta, doutor . . . Eu sei que ELE existe . . . mas acreditar, acreditar mesmo, não acredito . . .

Cassiano estava confuso:

- Espera! Como é que você fala que sabe que DEUS existe mas não acredita NELE?

Emanuel sorriu, tolerante:

- Ia ser meio difícil de explicar, doutor . . . acho que é uma coisa só minha, sabe não?

Cassiano cortou a conversa:

- Tá querendo me pirar, rapaz? Minha cabeça já está a mil e vem você com filosofia, querendo dar um nó no meu cérebro?

Bateu no ombro de Emanuel. Agora, era como se batesse no ombro do irmão que nunca teve:

-Acabou o café, Mané? Deixa a caneca aí, na mesa, e me dá uma mão com essa lâmpada.

E apontou para a lâmpada queimada, na Árvore.

Cassiano, no alto, estava atento a Emanuel, ao pé da escada:

- Cuidado pra não cortar o pé nos cacos de vidro, Mané!

- Tudo bem, doutor . . . tô atento.

- Acho que você nunca viu um cara tão teimoso como eu, hein, Mané? Quase três horas da manhã e não desisti ainda de ver minha árvore iluminada!

- O senhor tá certo, doutor! As pessoas esperaram pelo Natal por muito, muito tempo. E agora, depois que Jesus nasceu, é preciso festejar o Natal com alegria, mesmo se a gente estiver sozinho . . . Cristo chegou, está no mundo com a gente, está aqui!

Esta noite passa, amanhã é outro dia. . . E o senhor não está sozinho . . . eu estou aqui . . .

E, de mais a mais, um homem bom nunca está sozinho . . . Muita gente se lembra dele, ora por ele, pede pelo bem dele . . . As pessoas pedem muito pelo senhor, sabia?

Cassiano disse que não sabia.

- E isso vale muito, doutor! Muito mais do que o senhor imagina!

- Vale pra quem, Mané?

- Vale pra quem escuta o que essa gente diz. . .

Cassiano interrompeu por um momento a sua tarefa:

- Você é um sujeito bacana, Mané. Uma pessoa muito especial. Um irmão. Valeu o Natal por conhecer você...

Agora, faz favor, me passa a lâmpada.

Cassiano trocou a lâmpada. A sala ainda estava na penumbra. E desceu da escada:

- Está pronto! Pode ligar a luz!

Emanuel sorriu e, sem pressa, conectou o plug na tomada.

 

A nuca de Cassiano se arrepiou e ele sentiu um calafrio que nascia no mais fundo do seu estômago, quando a sala, de repente, se encheu da luz mais pura que jamais vira.

Era intensa como o sol, mas não feria a vista.

E a música, sem que Cassiano entendesse como, agora era “Glória in Excelsis Deo”. Mas o som não vinha mais do CD Player.

O ambiente assumiu uma nova realidade, como se Cassiano houvesse mudado de plano e não visse mais a própria Terra.

Sua visão transformou-se em um caleidoscópio, onde as cenas se sucediam em velocidade incrível.

Cassiano olhou para o teto e viu vultos luminosos em um fluxo, milhares deles, com longas asas diáfanas, voejando pela sala e cantando.

Agora, não havia mais o teto do apartamento, mas apenas o céu escuro e limpo, como se fosse um céu de inverno, cravejado de estrelas.

A música, de uma pureza celestial, não se parecia em nada com qualquer gravação que Cassiano pudesse ter ouvido.

O porteiro sorria.

- Troquei sua lâmpada, doutor . . . Coloquei uma lá do meu lugar. . . Não tenha medo. Somente fé...

Cassiano, agora, protegia os olhos com as mãos, extasiado com a beleza da luz:

- É linda. . . é a luz mais linda que eu já vi.

- É um presente de Natal pro senhor – disse Emanuel - o senhor é um homem de bom coração, um homem puro, que nunca se corrompeu . . . Eu lhe ofereço a luz de Belém!

Agora, a humildade de Emanuel se transformava em um tom de autoridade.

Mas uma autoridade bondosa, segura e cheia de amor:

- Você, Cassiano, é um homem de boa vontade. E hoje é noite de paz na terra... Paz na Terra aos homens de boa vontade . . .

Súbito, as roupas de Emanuel se tornaram brancas, de um branco resplandecente, como nenhuma lavanderia no mundo seria capaz de branqueá-las.

Sua pele não era mais negra, nem branca. Era da cor da luz, embora preservasse seus traços fisionômicos.

Cassiano admirou-se com seus cabelos:

Agora, estavam luminosos, lisos e desciam até o ombro.

Emanuel abaixou- se lentamente e, com todo cuidado, segurou o peixinho morto que estava sobre o tapete.

Abraçou-o com ambas as mãos em concha, como para protegê-lo:

- Ele está dormindo. Agora, precisa de água, Cassiano! Pegue para mim, por favor!

Suas palavras eram pronunciadas com ternura, quase um sussurro, como para evitar despertar o peixe-criança embalada em sua mão em forma de berço.

Cassiano acenou afirmativamente com a cabeça e saiu.

Pelo mundo afora, nos palácios, nas residências, nos conventos, nos hospitais, nos quartéis, nas comunidades, nos presídios e nos acampamentos de refugiados, pessoas desejavam-se Feliz Natal, como augúrios de paz e esperança, abraçavam-se e beijavam-se, cada qual segundo seu costume.

Cassiano voltou para a sala com uma fruteira cheia de água.

Vinha tão perturbado que foi derramando água pelo caminho, da cozinha até a sala.

Com cuidado, depositou a fruteira no aparador.

Emanuel foi até a fruteira e mergulhou as mãos fechadas dentro da água.

Cassiano observou as mãos de Emanuel, através do vidro do aquário, que se enchia de luz, uma luz amarela, que saia pelos dedos como raios de âmbar perfurando a água.

Emanuel olhou para Cassiano e sorriu, um olhar tão profundo e cheio de compaixão que o médico começou a soluçar, enquanto suas lágrimas escorriam incontroláveis.

Eram lágrimas retidas há tanto, tanto tempo...

- Cassiano, todo mundo sabe que um milagre acontece todo Natal . . . Mas, a cada dia, a gente pode assistir a muitos pequenos milagres: basta ter fé para enxergar. . .

É que, normalmente, a gente está tão ocupado, tão preocupado com nossos próprios pequenos problemas, tão voltado prá dentro de nós mesmos, que deixamos o tempo passar... não sorrimos...não perdoamos...nos esquecemos de pedir perdão, até ser tarde demais...nem nos damos conta de que cada um de nós é um personagem muito especial e único, escolhido para participar do maior milagre do mundo:

O milagre ... da vida!

Emanuel abriu as mãos, dentro da fruteira.

O peixe voltou a nadar.Cassiano estupefato caiu de joelhos e tocou a mão de Emanuel

- Eu .... eu....não. . .quem é o senhor?

- Eu SOU AQUELE QUE SOU! ... E você sabe quem EU SOU! Nós nos conhecemos mesmo antes de você nascer.E você nunca esteve sozinho. Todo o tempo, EU estive ao seu lado...

Cassiano se encolheu, assumindo uma posição fetal, as mãos estendidas procurando afastar Emanuel:

- Se afaste de mim, Senhor, porque eu errei demais....

- Você me conhece, assim como eu o conheço....Bem aventurados os que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia... Por amar ao próximo como a você mesmo, toda sua vida foi renovada... seu manto foi lavado no MEU sangue...Agora, olhe em frente e deixe a dor do seu passado para trás... Sua vida não tem mais mancha2. Você encontrou misericórdia... A MINHA misericórdia... E por isso, nada – nem ninguém - poderá separá-lo do MEU amor por você...Hoje e sempre... Seja feliz. Recomece. Tudo ficará bem. Até, um dia, nos reencontrarmos em MINHA casa. Onde já lhe preparei a sua morada. Até a eternidade!

Estendeu a mão, tocou o alto da cabeça e tomou delicadamente os ombros de Cassiano:

- Fique em pé, Cassiano! Feliz Natal!

O telefone tocou na escuridão.

Cassiano saltou assustado do sofá, todo amarfanhado, como que despertando de um sonho.

Esfregou o rosto. Confuso, foi, tropeçando, até o telefone.

Do outro lado da linha, a voz calma de Lígia:

- Cassiano?- Sou eu...

- Lígia?

– Oh, querido, eu e o André estamos falando de você... É quase meia-noite...Coitado do meu amigo...nem viajou, não é?

– Lígia, aconteceu uma coisa comigo... Começou a chorar baixinho.

Agora, Lígia demonstrava real preocupação:

– Amigo, você está bem?

– Eu... eu estou ótimo...nunca me senti melhor em toda minha vida!

Lígia deu uma gargalhada no outro lado da linha:

– Camarada...você abriu seu coração e deixou rolar? arrumou uma namorada pra passar o Natal com você? Posso saber quem é?

– Que namorada que nada, Lígia... Olha, depois eu te conto... Aconteceu uma coisa que...

Cassiano lembrou-se do porteiro:

- Preciso falar urgente com uma pessoa... Desculpem, mas preciso desligar... Está tudo ótimo... Um beijo pra vocês... Feliz Natal! Ela, definitivamente, desistiu de tentar entender o que se passava.

(Parte 9 - final)

Lígia deu uma gargalhada no outro lado da linha:

– Camarada...você abriu seu coração e deixou rolar? arrumou uma namorada pra passar o Natal com você? Posso saber quem é?

– Que namorada que nada, Lígia... Olha, depois eu te conto... Aconteceu uma coisa que...

Cassiano lembrou-se do porteiro:

- Preciso falar urgente com uma pessoa... Desculpem, mas preciso desligar... Está tudo ótimo... Um beijo pra vocês... Feliz Natal!

Ela, definitivamente, desistiu de tentar entender o que se passava.

Parecia que ele estava vivenciando um surto de euforia. Será que Cassiano era bipolar?

Sempre lhe parecera uma pessoa tão equilibrada...

– Bom, então Feliz Natal, amigo. Se cuida! Amanhã cedo voltamos de viagem. Liga pra gente. Fica com DEUS!

Ao fundo, Cassiano ouviu a voz de André:

- Feliz Natal, Camarada! Amanhã vamos até ai buscar você, pra gente almoçar juntos.

- Obrigado, André. Vou esperar, sim. Até amanhã e cuide bem da Lígia.

Cassiano se levantou e foi até o interfone.O porteiro estava em seu posto. A TV estava ligada:

- Portaria, boa noite!

Cassiano estava ansioso:

- Alô, Emanuel?

Jacinto, desconfiado, balançou a cabeça. Ele conhecia o doutor Cassiano desde que ele se mudara para o prédio e nunca interfonara, assim antes, tão confuso e ansioso.

- Será que bebeu? - pensou.

- Quem é esse Emanuel, doutor?

- O porteiro que ficou no seu lugar, esta madrugada!

Jacinto fez cara de quem não estava entendendo nada:

- Tô aqui direto, doutor! Agora é quase meia-noite! Ninguém ficou no meu lugar, não senhor! E eu não conheço nenhum Emanuel.

Cassiano se interrogou em silêncio:

- Mas que porcaria . . . Será que eu estou louco?

Jacinto estava preocupado de verdade:

- O Senhor tá bem, doutor?

Cassiano respirou fundo, tentando recuperar o autocontrole.

Olhou para a lâmpada da árvore de Natal e ela continuava apagada:

- Tudo bem, Seu Jacinto... Acho que estou muito cansado...me confundi...desculpe...boa noite!

Jacinto gostava do médico e se preocupava verdadeiramente com sua solidão:

- Boa noite, doutor! Se precisar de alguma coisa, avise! E Feliz Natal!

Cassiano olhou para a árvore. Estava muito triste:

- Feliz Natal, seu Jacinto. E muito obrigado!

Cassiano desligou o interfone. Colocou o aparelho no gancho e começou a caminhar, devagar, em direção ao aparador.

Cassiano estava inconformado:

- Mas não é possível! Foi tão real pra ter sido um sonho.

Foi nesse momento que voltou seu olhar para o aquário. Olhou distraidamente, quase um ato reflexo, a esperança por um fio.

Esperava, no fundo do coração, por um milagre que, agora estava certo, nunca havia acontecido.

Mas a certeza de sua mente cartesiana, fruto de tantos anos de dedicação à ciência, chocou-se com o que viu:

- Meu DEUS! O aquário!

O aquário estava quebrado. Os cacos se espalhavam pelo tapete. A escada estava armada, ao lado, próxima à árvore. Uma grande mancha de sangue marcava o tapete. E o peixe nadava plácido, na fruteira.

E, por fim

O ser humano não deve jamais perder sua fé. Deve viver com otimismo o presente e ter confiança no dia de amanhã. Esperança não é apenas uma palavra. Esperança é a certeza de que, muito antes de termos nascido, o Criador já nos amava, e cuidava de cada um de nós. E continua cuidando.

FIM