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Ela cobriu seus dois filhos com grande afeto, demorando-se neste ato.

Era alta madrugada. Subiu as escadas até os quartos. Para cada um, uma mensagem diferente no olhar e no pensamento. No entanto, para ambos, o mesmo amor. Frances de Azevedo 1 25820

Desceu para o hall onde deixara as malas, sem fazer ruído. Fez a última inspeção no ambiente e partiu, sem olhar para trás.

Este era o seu modus operandi sempre que partia para suas missões humanitárias.

Tudo começou logo após seu casamento. Assistiu a um filme cuja cena se passava na Etiópia. Uma criança, uma sombra do que fora uma criança, tão frágil, desnutrida, estava à mercê de uma ave de rapina. A mãe jazia no chão com as entranhas expostas. À volta, ninguém daquele povo, daquela gente, se importava com o fato. Afinal, era mais uma das centenas que morriam todo mês.

Então, uma missionária, que por ali passava, vem e resgata mãe e filho...

Esta cena jamais lhe saiu do pensamento. Acompanhava-a dia e noite. Persegui-a, assim como aquela ave que não queria largar sua provável refeição...

Quando partiu pela vez primeira, seu marido não se opôs. Sabia, muito bem, que qualquer tentativa de detê-la seria inútil. Quando ela colocava uma ideia na cabeça, não havia quem a demovesse de tal. Assim, não se importou num primeiro momento, até porque, bem lá no fundo, tinha esperança de que ela (quem sabe?!) viesse a desistir.

Todavia, tal não se deu. Esta foi uma sucessão de idas e vindas por lugares longínquos, não escolhidos, mas que, sem saber o porquê, chegavam-lhe às mãos, aos ouvidos. Simplesmente acontecia. Já estava em seu sangue. Tal atração acontecia naturalmente.

Pelo menos, duas vezes antes de o primeiro filho nascer, ela se deixou levar por essa força maior de ajudar onde fosse mais necessário.

Quando chegou à Somália, pela primeira vez, região da costa leste da África, foi como estivesse desembarcado em outro planeta, em outro mundo que jamais imaginara...

Aboletada em um jipe bem rudimentar, com o motorista, uma freira missionária do sul de seu país e outro morador da região, ela se desligou por completo de sua vida, de seu país. Nada mais existia. Ali, ela era apenas alguém que poderia salvar vidas. Muitas e muitas vidas. Quem sabe...

Pelo pouco que soubera – o que já era muito - as mortes, naquele campo para onde se dirigia agora, chegavam a ser de dez a doze óbitos por dia!

Isto não era nada, se comparado com outras regiões nas décadas de setenta e oitenta, aonde chegava o dobro por dia, centenas ao mês, milhares ao ano!

Com a guerra civil iniciada em fins dos anos oitenta, com os campos devastados pelas secas constantes, animais morrendo de sede, de fome, o país estava falido. Mais da metade da população subnutrida (75%).

Como descrever a precariedade, o quase nada, o nada absoluto muitas vezes?!

Tais adjetivos eram constantes. Era o que se via ao derredor.

Comida. Ah! O doce sabor do alimento: era, tão somente, o necessário (quando havia) para aplacar o grande vazio do estômago.

Chegava por doações de entidades estrangeiras sediadas principalmente nos EUA, Inglaterra e França.

Complexa, para não dizer absurda, essa operação de ajuda humanitária. Tantas questões, perguntas, critérios que se distanciam, por completo, do âmbito do problema em si. Um bando de burocratas, engravatados, que se coloca em salas refrigeradas, discutindo assuntos que só conhecem por terem ouvido falar... Muita burocracia para atender às milhares de bocas famélicas que necessitam também de remédios...

Por vezes, demoravam tanto, que tribos, povos inteiros, saíam de suas aldeias, de seus locais de moradia e passavam a vagar como se fossem um corpo só. Andrajos humanos, ambulantes. Verdadeiros zumbis, em busca da salvação que demorava a chegar...  Ou nunca chegava...

Para complicar, agravar ainda mais tal situação surreal havia os “atravessadores/comandantes”, pessoas que na região, à margem da lei, faziam as suas próprias leis: os revolucionários. Homens dispostos a tudo para derrubar o governo local. Atacavam os comboios de ajuda humanitária; saqueavam as cargas. Quando não, negociavam parte da mercadoria para que os carros fossem liberados e prosseguissem sua jornada.

Havia barreiras naquela extensa e longínqua região. Postos de comando vigiando, controlando a passagem, no que consideravam, denominavam seu território.

Por vezes, conseguiam se infiltrar, e nestes comboios chegavam a passar armas, objetos e informações diversas para manter a guerra civil!

Atualmente, ao que consta, há piratas que atacam as embarcações que transportam mantimentos do Programa Alimentar Mundial ligado à ONU, sendo necessária escolta de navios de guerra para que possam ser descarregados com segurança.

Despeciendo dizer que são momentos de tensão, muita tensão...

Assim chegou àquele local, em solo africano, desprovida de qualquer conforto, moral ou físico.

Todavia, sentiu que havia alguma organização no meio daquele caos aparente. Cada família tinha sua tarefa. A principal, naturalmente, a sobrevivência. E já era muito!

Quando chegou à enfermaria, levou um choque. Na verdade, arremedo de enfermaria, onde ficavam os doentes, os feridos; onde se operava, fazia triagem. Ali era tudo.

O que mais lhe chamou a atenção foram as moscas esvoaçando, insistentes. Motivos tinham para tal. Os corpos amontoados sobre pedaços de madeira, desprovidos de colchões. Sangue que escoava daqui, dali...

Aqueles corpos compridos, magros, ou melhor, esqueletos cobertos de pele, resistiam, no entanto.

Nos quase cadáveres, o que impressionava mesmo, eram os olhos. Os enormes olhos clamando pela vida! Encravados, desenhados nas faces magras, encovadas, onde sobressaía a cor branca. Eram a voz e os ouvidos dos corpos semimortos, daquele mundo que, com certeza, fora esquecido por Deus e pelos homens. Principalmente, por estes!

Olhos imensos! Olhos silenciosos. Olhos pacientes! Olhos amorosos! Olhos que clamam! Olhos que falam! Olhos que agradecem!

Por incrível que pareça, os olhos eram o único sinal do que se pode chamar vida, pois aquele ser desprovido de esperança conseguia agradecer àquelas almas piedosas com um singelo olhar pela tentativa de salvar o resto de suas vidas!

Salvar vida, mesmo que esta vida fosse apenas sobreviver por mais algumas horas, dias, talvez...

A Somália foi sua escola de missionária. De ajuda humanitária.

Foi para outros lugares. Inclusive, em seu próprio país, na América do Sul. Porém, jamais viu pobreza, miséria tão absoluta!

Cada lugar, uma história, uma etnia, um costume, um ideal. Mas, todos, com um ponto em comum: a luta pela sobrevivência, pela vida!

Chegou a se perguntar, muitas e muitas vezes, a razão de tudo aquilo. Vivia em seu país confortavelmente. Tinha casa, família, trabalho, uma boa situação financeira. Outros tantos também tinham. Conhecia países do primeiro mundo. Não conseguia entender essa diferença tão gritante, tão absurda!

De uma coisa, porém, tinha certeza: estava fazendo a coisa certa. Fazendo a sua parte. Sendo humana. Apenas sendo humana.

Depois, algum tempo depois, nasceu sua filha.

Teve que deixá-los algumas vezes, como agora, mas sabia que havia outros milhares de crianças, seus filhos, como os considerava, à sua espera.

Afinal, era médica. Tinha se formado para salvar vidas. Comprometera-se, sob juramento. O juramento de Hipócrates, do qual jamais se olvidara, mormente o de:

Praticarei a minha profissão com consciência e dignidade”

“A saúde de meu pacientes será a minha primeira preocupação”

“Manterei a todo custo, o máximo possível, a honra e a tradição da profissão médica”

“Não permitirei que concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais intervenham entre meu dever e meus pacientes.”

...

“Faço estas promessas, solene e livremente, pela minha própria honra.”

Esta era sua missão, bem o sabia...

(Prêmio Literário Cidade de Porto Seguro/Bahia/2010/Coletânea Festa Surpresa)