Cada geração lê a Bíblia para nela encontrar perspectivas de compreensão da existência humana e resolução de seus problemas. Porque a Palavra de Deus tem a característica de ser questionadora dos pensamentos e das ações dos povos, das palavras e eventos (“verba et gesta”) de nosso quotidiano.
Não deveríamos esperar que a meditação bíblica desaguasse sempre na perpetuação de ideias preconcebidas. O bom leitor é aquele que não se encastela nas ideias e modalidades de ação recebidas monoliticamente. Se há uma obra que está sempre aberta para o novo é a Bíblia. Mas reparemos que novo não é sinônimo de novidade. Há “novidades” que são de um arcaísmo medonho; na verdade elas sufocam o novo. Já o novo aponta para uma generosa abertura, para o contínuo despertar da vida, um amadurecimento contínuo, um compromisso com a busca da perfeição.
Quase sempre os educadores e os moralistas nos ensinam que a fidelidade é uma repetição de fórmulas do passado. Quase nunca vemos quem nos incentive a olhar para o porvir, para uma causa que nos atrai, nos seduz, à qual devemos ser fiéis. Deveríamos falar então de uma fidelidade não só ao passado, mas também ao futuro.
Tenho observado ultimamente certos textos, alguns como matéria paga em jornais e revistas, anunciando o fim do mundo, promovendo um concordismo de certas passagens da Bíblia, sobretudo do livro do Apocalipse, com alguns fatos da história recente, tais como a pandemia do covid-19, guerras, fenômenos climáticos etc.; seriam sinais anunciadores e antecipadores do final dos tempos. Horas de programação televisiva são consumidas nos detalhes escatológicos de uma ruína, uma total destruição bem próxima.
De fato, a abordagem da literatura apocalítica da Bíblia supõe algum preparo intelectual, supõe competência interpretativa de textos antigos, mormente os textos religiosos expressos numa cultura muitíssimo diferente da nossa. Existe uma ciência que nos qualifica para esse trabalho, a hermenêutica. Não se postula aqui nenhum elitismo; é uma questão de bom senso. Ninguém lê Machado de Assis como se ele tivesse vivido no Renascimento. Nem lemos Camões como se fosse participante da Semana de Arte Moderna de 1922. Nem se trata de conhecer e citar capítulos e versículos de cor. Repetir fórmulas nunca foi prova de fidelidade, é uma prática que pode nos conduzir a um delirante anacronismo.
O livro do Apocalipse, numa linguagem cifrada, embora perceptível para os leitores de sua época (final do primeiro século, época do imperador Domiciano) contém uma mensagem bem determinada. Visava manter unidos e resilientes os cristãos perseguidos e martirizados por causa de sua fé num império romano desumano, oligárquico, classista, mistificador, cruel, explorador. Um antigo provérbio rabínico dizia: “Do céu caíram dez medidas de riquezas: nove delas ficaram em Roma...”
Por essa razão, não temos no Apocalipse uma espécie de adivinhação do futuro. É uma profecia e uma sabedoria que ensinam o sentido da vida dos que seguem o Evangelho de Jesus Cristo no mundo, no tempo e no espaço, na história. Entretanto, não é um livro aprisionado na minudência da história, confinado ao primeiro século, produtor de sentido apenas para quem viveu na antiguidade romana. O ser humano tem estruturas que se mantêm e se renovam, tem limites e alcances, tem necessidades e esperanças, tristezas e alegrias que se encarnam nas diversas gerações. Mas Jesus Cristo veio revelar que nessa massa aparentemente banal há um fermento de vida, um dinamismo e meta que sempre nos acompanha: a semente de Deus plantada no nosso íntimo, que cresce e dá frutos, que nos faz da mesma raça, da mesma natureza divina. As figuras mudam, as situações são diferentes. Mas o apelo para o modo de viver – e não de representar – é sempre idêntico: a justiça, a solidariedade, o amor, a paz.
O livro do Apocalipse não deveria ser visto como um varal de penduricalhos de uma cosmologia superada. Ele é a proclamação de Jesus que efetivamente foi assassinado, mas que paradoxalmente está vivo e atuante como resistente no meio das comunidades. É de uma atualidade impressionante, porque – mesmo através de complexas imagens, figuras, símbolos – nos ensina que, pela justiça e solidariedade, pelo amor e a paz, podemos viver como novos cidadãos numa nova cidade (não a antiga, mas a nova Jerusalém). Devemos identificar “o Cristo que vem” não pelas catástrofes, mas pelos sinais dos tempos, o maior deles sendo a superação da competição, em benefício da partilha, da fraternidade, do amor sem caricaturas.
Não gostaria de terminar estas linhas sem sugerir ao querido(a) leitor(a) que lesse ou relesse as admiráveis passagens da Encíclica Pacem in Terris (1963), de João XXIII, sobretudo aquelas em que, inspirado em Lc 12,54-57, ensina-nos a discernir os “sinais do tempos”. Tanto os antigos quanto os sinais atuais.
(*) Jornalista profissional, professor universitário e membro da Academia Cristã de Letras.