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  • Fonte: Helio Begliomini

     Um dos Primeiros Romancistas Brasileiros!1

     “Quereis que nos liguemos estreitamente a uma pessoa? Fazei-nos sofrer por ela.helio acl 6bae9

     Manuel Antônio de Almeida (1831-1861).

     Helio Begliomini

     Preâmbulo

     Se a medicina é uma arte, seu maior protagonista só poderia ser um artista. De fato, ser um bom médico requer não somente condicionamento técnico constante e disciplina ética apurada, mas também acendrada sensibilidade humanística.

     Neste particular, o exercício da excelsa arte de curar proporciona a convivência constante e, por vezes, dificilmente descritível nos seus inúmeros matizes entre o paradoxo da vida e da morte; da saúde e da enfermidade; da integralidade e da anormalidade, constituindo-se fonte sobeja de inspiração. Daí se haure o desenvolvimento de habilidades que extravasam com garbosidade nas artes plásticas de uma maneira geral, como também na música e na literatura. É incontestável a miríade de esculápios que em tempos sucessivos e diversos são igualmente verdadeiros artesãos do pincel, da melodia, da massa informe através da escultura e das letras. Particularmente, na literatura, fazem-se representar na imprensa escrita não científica, assim como nos mais diversos e esparsos sodalícios, liceus e academias.

Médicos Escritores e Romancistas

     Atavicamente, os facultativos podem-se ufanar, pois, dentre os primeiros romancistas brasileiros, encontram-se três médicos: Joaquim Manuel de Macedo, nascido em Itaboraí (RJ), aos 24 de junho de 1820, publicou A Moreninha (1844) – no mesmo ano em que se graduou –, aos 24 anos, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Esse romance tornar-se-ia um marco reconhecidíssimo na literatura brasileira!

     A lém de médico, Joaquim Manuel de Macedo foi jornalista, poeta, escritor, memorialista, teatrólogo, político militante e professor de História e Geografia do Brasil no Colégio Pedro II. Colaborou em vários periódicos do Rio de Janeiro.

     joaquim manuel macedo1 a9d23Outros importantes romances de sua lavra foram: O Moço Loiro (1845), Dois Amores (1848), Rosa (1849), Vicentina (1853), O Forasteiro (1855), Rio do Quarto (1869), A Luneta Mágica (1869) e As Mulheres de Mantilha (1870-1871). Escreveu duas sátiras político-sociais: A Carteira de Meu Tio (1855) e Memórias do Sobrinho do Meu Tio (1867-1868); Entre suas poesias destaca-se o poema A Nebulosa, de 1857.

     Além de ser o pioneiro do romance no Brasil, Joaquim Manuel de Macedo foi um dos criadores do teatro brasileiro, descrevendo saborosamente a vida familiar, a trivialidade e os costumes da sociedade carioca de seu tempo.

     Suas peças nas artes cênicas são os dramas O Cego (1845), Cobé (1849) e Lusbela (1863). Suas comédias são O Fantasma Branco (1856), O Primo da Califórnia (1858), Luxo e Vaidade (1860), A Torre em Concurso (1863) e Cincinato Quebra-Louças (1873).

     Apesar do grande relacionamento social que travou em vida e do apogeu que alcançou nas artes literárias e dramatúrgicas, faleceu em 11 de abril de 1882, com 62 anos incompletos, no Rio de Janeiro, quase esquecido e na maior pobreza! Devido à extensão e importância de sua obra, Joaquim Manuel de Macedo foi escolhido por Salvador de Meneses Drummond Furtado de Mendonça (1841-1913), mais conhecido por Salvador de Mendonça – jornalista, advogado, diplomata, romancista, ensaísta, poeta, teatrólogo e tradutor –, para ser o patrono da cadeira número 20, por ocasião da fundação da augusta Academia Brasileira de Letras, em 20 de julho de 1897.

     José Antônio do Vale Caldre Fião, mais conhecido por Caldre Fião, nasceu em Porto Alegre, aos 24 de outubro de 1824. Nessa cidade, atuou como boticário, mas se mudou para o Rio de Janeiro durante a caldre fiao d1dffGuerra dos Farrapos (1835-1845), onde foi professor, no Colégio Estrela, de francês, italiano, latim, filosofia e ciências naturais.

     Ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e se graduou em 1851. Dedicou-se à homeopatia e foi membro do Instituto Homeopático do Brasil. Outrossim, abraçou o abolicionismo e, além de fundar, dirigiu o jornal O Filantropo, de 1849 a 1851. Foi um dos fundadores, em 1850, da Sociedade contra o Tráfico de Africanos e Promotora da Colonização e Civilização dos Indígenas, ideias pelas quais foi perseguido.

     Caldre Fião regressou ao Rio Grande do Sul, em 1852, e, além de médico, destacou-se como escritor, jornalista, professor e político. Foi o criador do romance rio-grandense-do-sul e o primeiro presidente da      Sociedade Partenon Literário, cuja revista ajudou a fundar e na qual publicou poesias e estudos biográficos. Foi também membro do Instituto de História e Geografia da Província de São Pedro.

     Na chácara onde residiu, em São Leopoldo (RS), sob seu beneplácito, sua esposa abrigava os filhos de escravas que tinham sido libertados pela Lei do Ventre Livre (1871).

     Caldre Fião atuou como deputado pelo Partido Liberal-Progressista e se destacou, em 1866, no combate à epidemia de cólera.

     Escreveu a obra médica Elementos de Farmácia Homeopática (1846), bem como os romances Divina Pastora (1847), Imerisa (1848) e O Corsário (1849). Divina Pastora é considerado o segundo romance brasileiro.  A primeira edição saiu em 1847, três anos depois de A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo. Originalmente, havia sido publicado com o subtítulo “novela rio-grandense”. Depois de ter sido dado como perdido, foi encontrado um exemplar em 1992, no Uruguai. Entre outras obras de sua autoria devem ser citados o drama O Coronel Manuel dos Santos (1848), e os poemas O Jardim das Noivas e Ramalhete Poético (1848).

     Caldre Fião faleceu em São Leopoldo (RS), em 30 de março de 1876, com 51 anos. É considerado o patriarca da literatura gaúcha.

     Manuel Antônio de Almeida – A Imortalidade na Efemeridade de uma Vida

     Um outro filho de Hipócrates que galgou a imortalidade na literatura brasileira, apesar da exiguidade de sua existência, foi Manuel Antônio de Almeida, que nasceu no Rio de Janeiro, aos 17 de novembro de 1830, tendo por pai, o tenente Antônio de Almeida, e, por mãe, Josefina Maria de Almeida.

     Apesar de ter ficado órfão de pai com 11 anos, concluiu os estudos preparatórios no Colégio São Pedro de Alcântara. Começou um curso de desenho na Escola de Belas Artes, mas desistiu. Em 1849, ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e ficou órfão de mãe quando tinha aproximadamente 20 anos. Enquanto estudante, ganhava dinheiro fazendo traduções para o jornal A Tribuna Católica, bem como trabalhou no jornal Correio Mercantil. Graduou-se, em 1855, com 24 anos.

     Devido às dificuldades financeiras, preteriu a medicina em prol do jornalismo e das letras, misteres que já exercia enquanto estudante. Além de jornalista, foi cronista, romancista, crítico literário e se tornou o primeiro novelista da literatura brasileira. Na imprensa carioca publicou seus textos nos seguintes periódicos: Correio Mercantil, Pacotilha, Jornal do Comércio e revista Guaracinga.

     Enquanto acadêmico de medicina, atuou como redator e revisor do jornal Correio Mercantil, onde escrevia num suplemento denominado “A Pacotilha”. Nesse suplemento, de junho de 1852 a julho de 1853, e contando com 21 anos, começou a publicar, anonimamente e aos poucos, os folhetins que compuseram seu romance (novela) Memórias de um Sargento de Milícias, reunidos em livro em 1854 (1a edição) e 1855 (2a edição) com o pseudônimo de “Um Brasileiro”. O seu nome apareceu apenas na 3a edição – já póstuma –, em 1863. Sua peça teatral Dois Amores (drama lírico em três atos) data de 1861, bem como se situa por essa época seus poemas. A maior parte de sua produção permaneceu esparsa por muito tempo.

     Manuel Antônio de Almeida pertenceu à primeira sociedade carnavalesca do Rio de Janeiro, o Congresso das Sumidades Carnavalescas, fundado em 1855. Também chegou a atuar como professor do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Tão-somente dois anos depois de sua graduação, foi nomeado diretor da Imperial Academia de Ópera Nacional.

     Em 1858, galgou a condição de Administrador da Tipografia Nacional, época em que encontrou Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), imortalizado como Machado de Assis, que lá trabalhava como aprendiz de tipógrafo. Em 1859, foi nomeado 2o oficial da Secretaria da Fazenda e, em 1861, pretendeu se candidatar a uma vaga de deputado da Assembleia Provincial do Rio de Janeiro. Enquanto se dirigia à cidade de Campos (RJ), no navio Hermes, para iniciar as consultas eleitorais, perdeu sua vida num naufrágio, precisamente em 28 de novembro, próximo à cidade de Macaé (RJ), ocasião em que contava com apenas 30 anos!

     O livro Memórias de um Sargento de Milícias é considerado como o primeiro romance urbano brasileiro, escrito quando em voga o Romantismo. Retratou a vida da classe média baixa do Rio de Janeiro, no início do século XIX, época da presença de Dom João VI e da corte portuguesa no Brasil, entre 1808 e 1821. A publicação do romance Memórias de um Sargento de Milícias passou despercebida pela crítica coeva, sendo reconhecido seu valor apenas pelos modernistas de 1922. Sua obra foi considerada de cunho realista, sem os artifícios que a técnica romântica fantasiava, deformava, embelezava ou idealizava a realidade. Foi redigido de maneira irreverente e, por vezes, jocosa.

    manuel antonio almeida d2674 Manuel Antônio de Almeida, apesar de curta existência, deixou marcas significativas na literatura nacional. Seu único livro e o conjunto de sua produção literária fizeram com que Herculano Marcos Inglês de Sousa (1853-1918), mais conhecido por Inglês de Sousa – advogado, professor, jornalista, contista e romancista – o escolhesse como seu patrono, na cadeira no 28, por ocasião da fundação da Academia Brasileira de Letras. Ademais, seu nome também foi escolhido como patrono da Academia Brasileira de Médicos Escritores (Abrames), fundada 17 de novembro de 1987, na cidade do Rio de Janeiro, dia e mês de nascimento de Manuel Antônio de Almeida.

     Como espécime de sua produção em versos têm-se o poema:

“A Uma Jovem Espanhola”

És tão mimosa e tão bela,

Como a estrela,

Que desponta rutilante,

 

E que se mira luzente

Na corrente,

Que retrata deslumbrante.

És airosa, qual palmeira

Que altaneira

 

Sua coma eleva ao ar,

ou qual batel enfunado,

Que apressado

Desliza à face do mar.

 

Esses teus olhos brilhantes,

Fulgurantes

Tem um quê, que diz — amor —;

Eu que os buscava evitar

Sem pensar

 

Me queimei no seu calor.

Esses lábios teus corados,

Engraçados,

E teus dentes de marfim,

 

São dotes que te invejara

O mais lindo Querubim.

A ti, virgem tão formosa,

Tão donosa

 

Votei santo e puro amor;

E tu serás insensível,

Impassível

Aos votos do Trovador?

 

Ah! não o sejas, Deidade,

Tem piedade

Deste mísero cantor;

Com teus olhos tão brilhantes,

 

Fulgurantes

Dá-lhe doce olhar de amor;

Com teus lábios tão corados,

Engraçados,

 

Dize um — sim — que lhe dê vida,

E serás na lira amada

Decantada

E no seu peito querida.

     Segue, a título de ilustração, um fragmento da peça teatral Dois Amores:

     Ato I: Na ilha dos Corsário no mar Egeu – Bahia rodeada de escolhos elevados que limitam a sua extensão. De longe vê-se em uma rocha maior, uma torre maciça, quadrada, de arquitetura bizantina. Por entre os escolhos, à esquerda, veem-se choupanas e grutas – abrigo dos corsários. Tarde; cair do sol.

     Cena I – Ouve-se no fundo o canto dos corsários – Coro (no fundo).

Como livres os ventos resvalam

Pelo plaino das águas ferventes,

Assim correm corsários ardentes

Luta e presas e glória buscar.

 

Tem seu reino no pego espumante;

E seu cetro vermelha bandeira;

Eles sabem com alma altaneira

Os perigos e a morte afrontar.

 

O que é vida? – de incerta fortuna

Um sorriso fugaz, duvidoso!

O que é morte? – Infinito repouso

Em que findam os gozos e a dor!

 

Sós gozemos! Debalde a vingança

Contra nós clama e brada ameaças!

Que se abafe ao ruído das taças

Os lamentos do nauta a expirar!

Palavras Finais

    Não resta a menor dúvida de que os médicos tiveram, têm e terão um papel relevante na literatura nacional, pois sua fonte de inspiração é a inesgotável saga humana, da qual se tornam artífices... timoneiros... reféns... observadores... restauradores... e lenientes.

    Infelizmente os médicos escritores são pouco lembrados, valorizados e cultuados entre seus pares, apesar de possuírem tradição secular e de fertilizarem uma miríade de entidades lítero-culturais espargidas nas mais diversas plagas desta nação. Contudo, pode-se afirmar sem o menor exagero que a literatura brasileira não teria a mesma riqueza e a notória diversidade sem as iguarias do seu talento, urdidas ao sabor de sua pena.

 

1 Este trabalho recebeu em 28 de novembro de 2020, o primeiro lugar no concurso anual da Academia Brasileira de Médicos Escritores – Abrames, sodalício sediado na cidade do Rio de Janeiro.