Como menino nascido no interior paulista, próximo à divisa de Minas Gerais, as festas juninas da infância permanecem inesquecíveis e presentes em meu imaginário como um momento de sonho.
Noite fria e estrelada - período de estiagem, só a garoa fina molhava nossos cabelos - família, amigos, muita gente reunida, comendo pamonha, curau e milho verde, pede-moleque (aprendi em Minas que não é pé-de-moleque) e canjica, tomando guaraná, caldo de cana ou leite com chocolate. Os adultos bebiam vinho quente e, em especial, o quentão, cujo perfume evolava dos bules ferventes e nos fazia ambicionar beber daquela ambrosia, quando focássemos maiores um pouco. Por enquanto, só lamber os beiços, diziam-nos os adultos. As brincadeiras, o casamento caipira, com a noiva grávida, o pai bufando atrás do noivo com uma escopeta apontada pras suas costelas, o padre que lia bula de remédio só pra falar bonito. Enfim, uma zorra.
Os meninos mais terríveis soltavam busca-pés em meio às meninas. Gritos das mocinhas e reprimendas dos adultos. Os pais só olhavam torto, prometendo que quando chegassem em casa, o coro ia estralar. Só aí os moleques se acalmavam...por dez minutos. E recomeçava a função. Havia correio elegante, uma enorme fogueira de toras sobrepostas, um caminho de brasas onde os mais fiéis passavam de pés descalços – sem se queimar! Como minha fé é fraca e eu sou péssimo em física, confesso que eu nunca compreendi aquilo ao certo, e nunca ousei passar descalço por ali. Mas o fato é que vi muita gente entrar de pés desnudos na cama de brasas e sair incólume do outro lado. Mistério!
As músicas, da nossa época, eram típicas: Pula Fogueira, Isso é lá com Santo Antônio, Sonho de Papel, Pedro, Antônio e João (“– com a filha de João, Antônio ia se casar”), Noites de Junho, Cai, cai, balão, Capelinha de Melão, Recado a São João, Pisei na Brasa. E os hinos oficiais das festas: A quadrilha completa Marcada e Falada e a Festa na Roça, ambas de Mario Zan, que até hoje são as campeoníssimas, executadas em praticamente todas as festas juninas de nossa região.
Curiosamente, embora as festas juninas tenham chegado ao
Brasil pelos colonizadores portugueses no século XVI e levadas, possivelmente pelos sertanistas bandeirantes, para as terras mineiras, mato-grossenses e goianas, até cem anos atrás prevaleciam as modas regionais e as valsas tocadas nas sanfonas, ótimas pra espantar o frio. Monteiro Lobato, em seu livro "Cidades mortas", traz o conto "Noites de São João", onde descreve deliciosamente um momento desses, que presenciou nos sertões do vale do paraíba, por volta de 19161.
A maior parte das músicas tradicionais citadas, que hoje conhecemos como típicas das festas juninas do sudeste, foram compostas mesmo do século XX, de autores como o já citado Mario Zan (“Festa na Roça” é de 1951), João de Barro, Alberto Ribeiro e Assis Valente., Lamartine Babo, Benedito Lacerda, Osvaldo Santiago, Osmar Zan e Palmeira. Dentre as mais antigas, “Capelinha de Melão”, tradicional e adaptada por João de Barro e Alberto Ribeiro.
Os cruzamentos culturais, favorecidos pelas migrações internas, pelo acesso às viagens e ao turismo e pela ação da mídia, inundou o carnaval do sudeste com as músicas nordestinas e paraenses: xaxado, baião, forró, xote, carimbó e outros ritmos, todos muito musicais e muito dançantes, foram se incorporando às festas do sudeste, ocupando espaço e, hoje, essas músicas são por vezes mais tocadas que nossas músicas regionais tradicionais.
Como a cultura é viva, essas mudanças são naturais e mais que isso, são esperadas e contribuem para enriquecer nossa visão de mundo.
O problema é o excesso. Fui convidado e, todo feliz, fui a uma festa junina em um sítio de um amigo. Acho que minha roupa destoava um pouco, porque todo mundo estava vestido de moda “caipira chique”, muitos agroboys e agrogirls, com roupas de grife, chapéus caros, cinturões até joias algumas das pessoas presentes ostentavam. Aquilo já me incomodou um pouco porque, em festa junina que se preza, a roupa tem de ser simplona, ter remendo, as meninas tem de vestir chita, com tranças e maria-chiquinha, o caboclo tem que ter uma barbicha (ainda que pintada a carvão) e o chapéu de palha tem de ser meio desfiado, não do Texas.
Perguntei da fogueira. Proibido, porque infringe a lei ambiental.
E o balão? Proibido, pois causa incêndio na mata.
E os fogos? Não pode. Porque assusta os pets.
E os doces? Muito açúcar adicionado, muito sódio, melhor comer frutas e milho cozido e está bom assim.
Havia, sim, em defesa da verdade, alguns bolos de fubá, de cenoura, de chocolate. Todos industrializados. Porque não há tempo a perder para preparar bolo caseiro, quando é muito mais prático comprar pronto na padaria.
Quando me atrevi a pegar uma paçoquinha “Amor”, abri a embalagem e a degustei com prazer, farelos saindo da boca e caindo pra todo lado, senti olhares de reprovação, Não pelo farelo:
-Por isso está gordo! – pareciam murmurar. O povo preferia beber whisky com energético a experimentar o quentão que a avó da dona da casa, em um esforço de preservação de memória gustativa, ainda ofereceu gentilmente ao público. Sem muito sucesso, a adesão foi baixa. Tomei três.
Finamente, chamaram o pessoal para a Quadrilha. Como todos sabiam que eu sou caipira (com o maior orgulho, por mercê de Deus!) pediram que eu fosse o marcante, aquele que orienta os dançarinos durante a performance, indicando os movimentos e comandos a seguir. Aceitei com muita hora, emocionado até, e fiquei esperando o início do “Festa na Roça” de Mario Zan . Evidentemente, a música estava baixada do Spotfy, porque quem iria gastar duzentos reais para contratar um sanfoneiro de verdade? Acho mesmo que as pessoas pensam que músico vive de bemóis e sustenidos, e não tem família para sustentar...
- Uma surpresa antes da quadrilha, a pedido da Jenifer! - anunciou todo orgulhoso o dono do sítio, fiscalizado de perto pela Jenifer, a filha mimada e adolescente, que, de cenho fechado, parecia cobrar dele aquela intervenção.
O que se seguiu foram dois garotos, fantasiados de MCs Ostentação, de boné e cheios de correntes douradas, invadirem o terreiro ao som de Ludmilla e Anitta. Deram piruetas e o funk seguiu, com Mc Fioti, Dani Russo, Mc Mirella e Mc Pocahontas. Os meninos na maior street dance, rodando no terreiro e saltando, chocando peito com peito. O povo uivava no compasso, pulava e batia as mãos, como se fosse uma festa apache do tempo do cabo Rusty e Rin-Tin-Tin. Para mim, desculpem a franqueza, associei sem querer a uma cena do delírio infernal do quadro de Yeronymus Bosch. E ri sozinho.
Pensei comigo: - o que é que esse funk tem a ver com festa junina?
Mas não falei nada, afinal se “todo mundo” gosta e sai na Globo, quem sou eu para questionar?
Admirando a exibição de agilidade da moçada - embora realmente me parecesse pouco convencional para uma festa junina típica - esperava pacientemente minha vez na fila, para começar a cantar os passos da quadrilha, que meu pai um dia me ensinou.
Depois da exibição coreográfica, os MCs deixaram o terreiro e foi a vez da Quadrilha Marcada e Falada.
Pares a postos, noiva, noivo, sogro e padre posicionados, som na caixa! E começou a quadrilha:
- Cumprimento!
- Balancê!
- Passeio na roça!
- Olha o túnel!
- A ponte quebrou! (uhhhh)
- É mentira! (ehhh)
Olha a cobra!
Gritos de horror cortaram a escuridão. Pessoas correndo, mulheres em pânico, homens também. Quem pôde subiu nas cadeiras. Outros dispararam para a churrasqueira iluminada.
O dono, tentando impor um pouco de ordem, determinou:
- Acende a luz!
O sitio virou dia.
- Vão chamar o seu Argemiro! - completou. Seu Argemiro, o caseiro do sítio há mais de vinte anos, era querido e respeitado por todos e conhecido por sua valentia e suas façanhas como caçador de javaporco que, para ser honesto, às vezes ele aumentava um pouco.
Como no caso da pequena cicatriz na mão esquerda que exibia orgulhoso para os incautos, falando que foi mordida de um filhote de onça, embora os mais bem informados soubessem que foi provocada mesmo pelo Joli, um mini pinscher mal humorado e ciumento da Jenifer que, anos atrás, lhe ferrou o dente.
- Cadê a croba? - Seu Argemiro, caindo de sono, não sabia direito o que estava acontecendo, mas disseram a ele que eu é que tinha salvado todo mundo, quando alertei sobre o perigo de uma cobra venenosa enorme à solta no sítio. Ele veio chegando até mim desconfiado, bocejou, cumprimentou e me perguntou, com um porrete de guatambu na mão.
Falei que a cobra, a essas horas, tinha rastejado pra longe, que nem venenosa era, parecia mais uma caninana, e que estava tudo bem. Ele voltou pra casa, usando o guatambu como um bastão de trekking. E eu, saindo à francesa, fui-me embora dormir. Com um oco no coração, sentindo meu peito vazio como um ninho abandonado de joão-de-barro.
No ano que vem, se São João me ajudar, quero ir ao sertão de Arceburgo, de Araras ou de Mococa, para achar, se é que ainda exista, uma verdadeira festa junina, bem caipira, rica em sua simplicidade e religiosidade. Quem sabe eu dê sorte e o nosso querido Santo Antônio, tão gente boa e tão comiserado das misérias humanas, me indique aonde eu deva ir para, ao menos em uma noite de festa junina, redescobrir um pouco de um interior tão simples, mas tão rico de sabedoria e de valores, delicioso de se viver que, para minha tristeza, vai ficando para trás.
São Paulo, 17 de junho de 2024
1 O conto foi publicado pela primeira vez na revista “A Vida Moderna”, em 1916.