É na condição humana que sofremos a discórdia, e é nesta mesma condição que somos capazes de experimentar a reconciliação. Neste sentido, um Deus que verdadeiramente assumiu a condição humana (cf. Jo 1,1-18), poderia nos ensinar (testemunhar) algo sobre o perdão? Não é este mesmo Deus a imagem da perfeição humana (cf. Ef 4,9-16)? Poderia a experiência religiosa dizer algo sobre as tragédias e violências que provocam discórdias? Seria, ainda, o perdão o valor religioso que mais responde às reconstruções das relações humanas?
O cotidiano da vida nos impele a fazer perguntas e buscar respostas. Nem sempre percebemos que os fatos da nossa existência, para além das alegrias, abrigam também a dramaticidade e o desespero. Seriam eles espaços para Deus “desabrochar-se”, desvelar-se, e se manifestar como vida, também ali onde parece só existir o ódio, a discórdia, o rancor, a morte?
Não podemos nos contentar somente com teorias. O cristianismo não é teoria. É acontecimento. É o Amor que entra na história, sem retórica, para fazer a sua história: história de salvação, de reconciliação!
Três exemplos:
1) Há vários anos, época do autoritarismo no Brasil, um jovem foi preso em São Paulo e dias depois encontrado morto no Recife, com terríveis sinais de tortura. Os pais do jovem, residentes em Belo Horizonte, eram católicos, pessoas de meu relacionamento. Eu estudava no exterior e lhes escrevi, com os cuidados que a situação requeria, pensando que minhas pobres palavras lhes pudessem servir de conforto espiritual. A resposta de Yedda e Edgard Godoy da Mata Machado chegou-me como a de um arauto evangelizador. Relataram a dor imensa que sentiam, só Deus sabe com que força eles a estavam superando, e terminaram a carta citando o também sofrido Léon Bloy (1846-1917): “Tudo o que acontece é adorável”.
Que paixão extraordinária é essa, que faz um casal católico ver – até no assassinato de um filho – uma ocasião de adoração a Deus! De que misteriosa fonte ele pode buscar tamanha energia? A Teologia nos ensina que esse dinamismo se chama
“graça”. É como se fosse o sangue de Deus injetado nas veias humanas, oxigenando nossas vidas com um vigor que nos faz – mais que tudo – querer Deus, participar da própria vida de Deus.
2) Um prisioneiro recebe, na penitenciária, a visita de um pai de família. Seu filho mais velho fora por ele assassinado. O motivo da morte foi torpe. Por todas as razões, por todas as lógicas do mundo a inimizade entre os dois deveria ser perene. Ninguém poderia esperar que esse pai quisesse, até mesmo por um átimo, ver o rosto do criminoso. A sua simples presença no cárcere, para visitar o condenado, era criticada até por alguns da sua família e por amigos. Se houvesse uma cena de vingança era possível que vários a entendessem e a aceitassem. E no entanto a cena era de arrependimento e de perdão! Sem fotografias, sem medalhas, sem colunismo social, sem exibicionismo.
Não devemos exigir heroísmo de ninguém. Mas não devemos ignorar que a força do Evangelho, o amor de Deus, por Jesus Cristo, é capaz de operar transformações radicais. Até os apóstolos ficaram atônitos quando Jesus lhes fez perceber que é possível uma justiça que ultrapassa a dos fariseus e publicanos. E quem subscreveria, de bom grado, essa impressionante sentença de Jesus em Lc 15,7: “Haverá mais alegria no céu por um só pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não precisam de arrependimento”?
O encontro foi preparado durante dois anos pela Pastoral Carcerária da Igreja católica. Houve a paciente atuação de dois sacerdotes, com a colaboração de uma experiente psicóloga. E deve ter havido, além de muitas entrevistas, muita, muita oração. Os caminhos foram aplainados, a cólera aplacada; no terreno do coração, ao lado da justiça, germinou a semente do amor misericordioso. Num local onde certamente existia centenas de apenados arrependidos do mal que cometeram, mas cuja esperança de vida nova ainda não se convertera em gestos concretos, duas pessoas se encontraram e começaram a reconstituir um tecido dilacerado. Ficaram as cicatrizes, mas continuou o fluxo da vida. Por ali passou o sopro de Deus, “amante da vida” (cf. Sb 11,26).
3) Mais um exemplo. Com certeza muitos ainda se recordam que, em 1983 e em 2000, o Papa João Paulo II visitou no cárcere o jovem turco Mehmet Ali Agca, que em 13/5/1981 lhe desferiu três tiros na Praça de São Pedro, os quais, se não mataram o
pontífice, deixaram-lhe a saúde frágil para o resto da vida. Tais visitas são gestos que valem por mil palavras! Aliás, minutos após aquele atentado, o papa falou: “Eu já o perdoei, já me esqueci”. Impressionante coerência: meses antes, João Paulo II publicara a primeira encíclica de seu pontificado: “Dives in misericordia” (Deus, rico em misericórdia).
Gestos desse porte, atos de tamanha grandeza merecem reflexão, introduzem-nos no horizonte luminoso do perdão, da misericórdia.
A sociedade humana na qual viveu Jesus era caracterizada por praticar uma forte exclusão. Caíam sob a espada da exclusão todos os que ignorassem ou negligenciassem a lei: enfermos, publicanos, prostitutas, ignorantes etc. Não obstante, Jesus convivia com pecadores, tomava refeição com eles, como se lê em Mc 2,15-15. Certamente essa atitude de Jesus punha em discussão as regras pelas quais se classificavam os que se consideravam justos e os que eram considerados pecadores.
Qual a origem dessa estrutura de exclusão? Era a organização da vida baseada na distinção entre pureza e impureza, Ora, o que era considerado impuro devia ser banido da vida social e religiosa, pois a impureza era vista como uma ameaça, tanto a ameaça física (como no caso dos leprosos) quanto a ameaça moral, espiritual (caso dos pecadores). Os excluídos não podiam frequentar a sinagoga e muito menos o templo.
Impressiona, portanto, ao leitor do Evangelho, que Jesus se envolva com esses gangrenados sociais por uma concepção de impureza, pelo pecado, votados à exclusão. Aproximar-se deles não era visto como ato virtuoso, pelo contrário, era prova de perversão.
Jesus não só se aproximou, mas também conviveu com os excluídos. Manifestou uma predileção por quem estava longe da comunidade. Em vez de legitimar ou reforçar a exclusão, ofereceu o perdão aos que viviam à margem dos caixilhos da santidade legal.
A conhecida filósofa Hannah Arendt (1906-1975), escrevendo sobre a condição do homem moderno, chegou a afirmar que foi Jesus quem abriu o entendimento para o papel do perdão no domínio das relações humanas. Em que sentido?
Por sua arguta inteligência e qualificada observação dos trágicos acontecimentos do século XX, especialmente a Shoah, é notável o testemunho da filósofa. Ela quis
demonstrar que a ação humana, às vezes ambígua, às vezes francamente irracional e violenta, produz resultados extremamente nocivos às pessoas e às comunidades. O perdão pode ser o corretivo necessário dos inevitáveis prejuízos resultantes de tal ação. E não devemos nos ater unicamente aos grandes crimes, mas também aos fatos menores, à minudência da história que também pode envenenar o relacionamento pessoal e social. O fato é que as feridas provocadas pela ação (até mesmo involuntária) dos seres humanos interrompe o relacionamento harmonioso que deve presidir as trocas interpessoais e sociais.
Perdoar, nesses casos, é restabelecer a relação entre dois seres, rompida por causa de uma ofensa. O que nos leva a perguntar: Quem perdoa, quem pode perdoar?
O perdão tem um lastro, um estofo, um elemento fundador. O Novo Testamento nos ensina que o fundamento de tudo é o perdão de Deus (Mt 6,12; 18,21-35: Lc 17,3s; Mc 11,25). Ensina ainda que o perdão que vem de Deus deve tornar-se uma dimensão da existência dos filhos de Deus. Como? Através da pessoa e da missão de Jesus Cristo.
Jesus é o ápice do relacionamento entre Deus e o ser humano. Conhecemos a história desse relacionamento: sempre sólido, da parte de Deus; frágil, da parte humana. Mas chega o momento (kairós) em que o perdão de Deus atinge o ponto culminante: o perdão de Deus atinge a existência humana no destino de um homem, Jesus de Nazaré.
A realidade “perdoante” de Deus se encarna na palavra profética, na prática libertadora e na morte por inexcedível amor de Jesus.
O relacionamento sempre frágil do ser humano poderia levá-lo à vicissitude da irreversibilidade de suas ações, “à incapacidade de se desfazer o que se fez” (Arendt). A libertação das consequências do que fizemos, e a chance de superarmos este destino irremediável, vem-nos do perdão.
O que poderia ser só de Jesus, seu galardão intransferível, ele o comunica ao ser humano e ordena que seja vivido comunitariamente, eclesialmente. A Igreja é a comunidade dos que foram perdoados e dos que perdoam em nome de Jesus. Até sete vezes? Até setenta vezes sete... não há limites (Mt 18,21-22). O perdão de Deus é contagiante, transformador (Mt 6,12). Por isso, ai do mundo se a Igreja perdesse a sua força de perdão, sua capacidade de testemunhar o amor misericordioso de Deus (cf Mt 18,18).
Poderia haver maior alegria do que reconhecer-se retornado ao coração de Deus e do próximo? Jesus responde a esta pergunta com a parábola do pai que se deixa comover, o pai-mãe misericordioso, que abraça o filho e o restaura na comunhão familiar (Lc 15,11-32). Perdoar, portanto, é um sinal identificador, não do rótulo, mas do verdadeiro espírito cristão.
(*) Jornalista profissional, professor universitário, membro da Academia Cristã de Letras.