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O Lauro Escobar das minhas lembranças: A HIistória da Bandeira da cidade de São Paulo contada pelo seu idealizador.

Escobar 47e01Gabriel Kwak              e             Lauro Ribeiro Escobar

O heraldista Lauro Ribeiro Escobar (1926-2016) foi o criador da bandeira paulistana e de centenas de bandeiras e brasões de armas oficiais de Municípios pelo país afora.

Fiz com ele excelente entrevista anos atrás e vem a propósito recordar o encontro ao ensejo da posse do nosso confrade Carlos Tauffik Haddad na Academia Brasileira de Cerimonial e Protocolo neste mês de novembro de 2022.

Procurador do Estado aposentado, Lauro integrava o Instituto Histórico e Geográfico do Estado de São paulo, o Conselho Estadual de Honrarias e Méritos e o Instituto Brasileiro de Genealogia (entidade do Cel. Salvador Moya, A.B. Galvão Bueno Trigueirinho e Israel Dias Novaes).

Naquela tarde, Lauro dividiu comigo a história da concepção da bandeira de São Paulo, além de cuidar, de raspão, de outros episódios dos bastidores do poder. Com a palavra, Lauro Escobar:

Escobar - A história da bandeira de São Paulo teve surgimento quando da primeira FENITE, a Feira Nacional de Indústria Têxtil. Era daquela firma Alcântara Machado Feiras e Eventos, do Caio Alcântara Machado, que era uma companhia bem-estruturada. Fizeram uma propaganda muito grande e, no Viaduto do Chá, em cada ressalto dele está uma bandeira, quatro mastros com duas bandeiras paulistas e duas paulistanas. Naqueles quatro mastros, a FENITE colocou a bandeira nacional, a bandeira paulista, a bandeira da FENITE e queria colocar a bandeira paulistana, mas não existia. São Paulo só tinha o brasão de armas, que vem desde 1917, foi criado por dois gigantes de São Paulo que foi o poeta Guilherme de Almeida e o grande desenhista José Wasth Rodrigues.

Só que estava surgindo a conveniência de haver uma bandeira paulistana. Não havia e eles puseram no centro de um retângulo branco o brasão de armas da cidade. Foi o que ocorreu à Alcântara Machado. Nas FENITEs eles hasteavam essa bandeira branca com o brasão de armas no centro. Alguém na Prefeitura, gostou da idéia e começaram a hastear essa bandeira em algumas repartições públicas. Naquela época, eu já estudava o assunto – quer dizer, estudava por diletantismo, como até hoje, eu sou diletante nessa matéria...

Gabriel - Isso é modéstia do senhor...

Escobar - Não é modéstia. Não sou um profissional. Eu tenho muitos projetos, tenho mais de trezentos municípios com brasão de armas e bandeiras de minha autoria. Tenho estandartes e brasões de batalhões, de setores da Polícia Militar...Em São Paulo, eu tenho projetos em mais de duzentos municípios paulistas: São Vicente, por exemplo. Eu nunca faço nada a não ser que seja solicitado. Quando o Município não tem brasão de armas nem bandeira, é fácil, eu faço. Quando já tem, aí eu tenho que fazer primeiramente um estudo. Não é difícil. Eu sempre leio, continuo lendo, gosto do assunto. Foi o que me preparou para a aposentadoria. Porque o pior que há na aposentadoria, é o cidadão se aposentar e continuar fazendo a mesma coisa. Não deve. Quando se aposenta, ele tem que virar a mesa.

Quando o Município já possui brasão de armas e bandeira, e, mesmo assim, o prefeito tem dúvidas quanto à correção e me consulta...Eu não vou me oferecendo, eu acho que seria contra a ética. Faço um estudo e faço o meu projeto. Sempre que possível, eu uso elementos do brasão de armas anterior. Ás vezes, a correção é uma mera sintonia, pequenas coisas. Bauru, por exemplo, eu sou o autor da bandeira de Bauru. O brasão é como era, só que com uma sintoniazinha.

Naquela época, quando surgiu a idéia de São Paulo ter a sua bandeira e algumas repartições já estavam utilizando aquela bandeira idealizada pela Alcântara Machado, perguntavam o que eu achava. “Isto é bandeira de aldeia”, eu dizia. A bandeira de campo inteiramente branco com o brasão de armas no centro é bandeira de aldeia. Aí perguntaram: “E aldeia tem direito a bandeira e a brasão?” “Depende do país. Na França, é perfeitamente possível. Em Portugal também. No Brasil, não, porque a Constituição diz que só têm direito aos símbolos próprios os Estados, os municípios e o Distrito Federal. Esses países em que é possível são países que são berço da Heráldica.” A Heráldica surgiu na Europa Ocidental, onde exatamente não se sabe. A época exatamente não se tem notícia. Naquela época, ninguém sabia escrever. Ler e escrever era para os monges e para os sabedores, os cientistas da época. E os legisladores – não os legisladores no sentido atual, eram os que faziam as leis. Nem os reis eram alfabetizados. Ninguém escreveu sobre Heráldica quando ela surgiu.

Eu dizia isso: essa bandeira não dá, é bandeira de aldeia. Na Prefeitura, abriram um processo para estudar o assunto. Na Prefeitura, não havia um estudioso naquela época sobre o assunto. Havia várias pessoas que conheciam a matéria aqui em São Paulo, mas ninguém foi ouvido. Aquele processo ficou baqueando de um lado para o outro, ficou aumentando, mas não resolviam nada. Quando o Jânio subiu ao poder como prefeito, no seu último mandato – depois disso, ele morreu – o processo foi à mesa dele. O Murillo Antunes Alves era o chefe de cerimonial e o Jânio o encarregou de resolver o problema. O Murillo começou catar as pessoas para formar a comissão, o tal grupo de trabalho. O Murillo havia sido chefe de cerimonial do governo do Estado e eu trabalhei no Palácio do Governo por sete anos, desde o tempo do professor Carvalho Pinto. Eu era procurador do Estado concursado e fui convidado para trabalhar no então Serviço de Assistência Jurídica e, depois, Assessoria Jurídica do gabinete do governador. O cargo era privativo de procurador do Estado concursado, era um grupo muito bom de doze. Depois, subiu para quatorze, criaram uma subchefia...Todos eles apolíticos. Quando fui convidado, fui convidado pelos colegas, não foi pelo governador. Nós precisávamos de gente que fosse pra arregaçar as mangas e trabalhar corretamente. Sem interesse algum. Eu até nem entendia muito de Direito Administrativo, a minha área era outra. Mas o colega que me indicou confiou no meu taco. O chefe do Serviço era Cássio Egídio de Queirós Aranha. Eu fiquei lá 27 anos. Ninguém mexia conosco. Nenhum governador pediu coisa nenhuma...

Assim eu fiquei conhecendo pessoalmente o Murillo. Dávamos muito bem. Depois, quando ele foi pra Prefeitura para ser chefe do Cerimonial, ele se lembrou que eu estudava o assunto e me convidou para participar do grupo de trabalho. Mas acontece que o governador daquela época era o Montoro. E o Montoro e o Jânio não se bicavam muito. Pelo menos, aparentemente. Eu disse ao Murillo: “Olha, eu vou. Mas acontece o seguinte: eu quero que faça a coisa dentro dos estatutos. Porque eu não quero me arriscar, eu sei que o prefeito e o governador não estão em muito boa paz e eu não quero ficar como um marisco entre o mar e o rochedo.” Enquanto os papéis estavam correndo eu comecei a pensar qual seria o meu projeto para a bandeira de São Paulo.” E fiz lá o projeto simples, bem visível. Quando o grupo se reuniu, eu disse: “Eu fiz um projeto.” “Ah, então, traga.” O pessoal gostou. Eles apresentaram um outro projeto, mas era daqueles muito comuns...

Fizemos o projeto de lei, que cuida do brasão de ramas e da bandeira. As sucessivas leis que cuidavam do brasão de armas faziam a descrição, mas não a interpretação. Essa interpretação já existia feita pelos próprios autores do brasão de armas. E essa interpretação estava num opúsculo publicado pela Prefeitura “Brasão de Armas de São Paulo – Segundo Concurso”. O opúsculo do primeiro concurso eu não tenho, mas eu tenho uma cópia desse opúsculo do segundo concurso, com as descrições e interpretações de todos os projetos oferecidos pelos concorrentes. O primeiro concurso público para o brasão de armas da cidade de São Paulo, teve como resultado que a Comissão Julgadora entendeu que nenhum dos projetos servia. Aí foi feito um segundo concurso. Nessa altura, o Wasth Rodrigues e o Guilherme de Almeida se uniram e juntos fizeram essa beleza que é o brasão de armas. E eles fizeram a justificação, que deveria ser incorporada ao texto legal. E nunca foi. Então, naquela ocasião, eu que conhecia essa circunstância e tinha em mãos aquele opúsculo, coisa que pouca gente tem – eu fui buscar na Biblioteca Municipal. Assim, a lei fica sendo uma lei didática.

Gabriel - Com a interpretação?

Escobar - Com a interpretação, descrição e modulagem. Porque a bandeira não tem tamanho. A bandeira pode ser feita desde aquela pequenininha para colocar na mesa de gabinete até a de Brasília, que é imensa. Mas não é o tamanho, é a proporção.

Gabriel - E o que o Jânio achou?

Escobar - Primeiro a comissão aprovou o meu projeto. Nós fomos ao gabinete e foi quando eu tive o primeiro contato pessoal com o Jânio.

Eu me referi a Adão, porque ele teve um problema semelhante ao do Jânio naquele momento. É, mas Adão teve uma só e eu estou com duas. Ele quebrou duas costelas. Estava com um colete certamente. Mas estava trabalhando. Batemos um papo, a conversa esticou, foi até muito gostoso. Ele viu o projeto, gostou dele e nós discutimos muito.

Aconteceu uma coisa curiosa: é que o Guilherme de Almeida e o Wasth Rodrigues eram moços quando fizeram o brasão de armas de São Paulo. O Guilherme de Almeida tinha cultura geral mas ainda não estava aprofundado. E ele disse lá pelas tantas, no descrever o brasão: “em cada torre, com três ameias...” Ele fez uma confusão entre ameia e merlão. Porque o merlão é aquele ressalto no cranelado de uma fortaleza e o buraco vazio é a ameia. Então, fica um soldado em cada ameia. Aí eu fiz essa observação. “Olha, ele usou o termo inadequado, ele era mocinho, naquela época havia poucos livros sobre a matéria...” “Ah, não há problema, vamos ver o Aurélio.” E mandou vir o Aurélio. No Aurélio, o ressalto era dado como ameia. Não era o Aurélio. Era a equipe. E, na equipe, cada um escreveu lá uma coisa, um copia do outro. Copiaram do dicionário errado. Eu disse: “Bom, eu não quero parecer com aquele rapaz da parada militar, que os pais disseram que era o único que estava do lado certo da parada e os outros estavam errados. Eu trago aqui uma prova.” Aí eu fui buscar na “Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira”, que era mais portuguesa do que brasileira, mas é uma enciclopédia vinda de um país que é um dos berços...a Heráldica não foi autóctone em Portugal, ela chegou depois...eu tirei um xerox do verbete “ameia” e do verbete “merlão” e levei lá, na outra reunião. “Está aqui. Essa é a enciclopédia de um país que sempre usou a Heráldica, que viveu a Idade Média. Nós não vivemos a Idade Média, eles viveram e sabem o que é uma ameia e sabem o que é um merlão.” Aí eles se convenceram.

Várias vezes, eu tive interferências nessa área.

Gabriel - Na Câmara, como é que foi?

Escobar - O Jânio mandou pra Câmara. Dizendo: “Eu sei o que aqueles comunistas vão dizer. Porque é uma cruz e eles são ateus...” Ele fazia muito pouco da Câmara. A Câmara debateu e acabou aprovando. Os jornais acabaram fazendo um pouco de gozação por falta de conhecimento da matéria. Gozaram o Jânio, colocaram lá uma bandeira com uma garrafa de pinga, com uma vassoura...o braço armado com aquela machada com uma vassoura. Tudo muito engraçado, mas, afinal de contas, o assunto era sério. 

Houve uma vez que aquela prefeita Erundina, logo que tomou posse, disse que queria fazer um novo símbolo pra São Paulo, dizendo que São Paulo é para todos. Não precisa dizer nada disso, o acolhimento de São Paulo está aí, gente de toda parte do mundo, há comida de toda parte do mundo, se alguém quiser comer comida indiana, encontra vários restaurantes indianos...Italiana, chinesa, japonesa, árabe...Gente que vem aqui e se dá bem. Ela queria por São Paulo é para todos. Eu escrevi uma carta pro “Estadão”, esculhambando e eles publicaram. Bom, depois disso, houve um outro, um vereador que quis traduzir o “Non Ducor Duco”, porque dizia ele: “Ninguém mais conhece o latim e tudo o mais...” Eu tinha tido um problema naquela ocasião. No Dia das Mães, eu fui ao cemitério e havia chovido. E eu fui atravessar a rua e escorreguei. Foi um escorregão à toa, só que uma perna escorregou e a outra a sola do sapato prendeu. Deu uma torção e eu quebrei os ossos da perna. Eu estava não propriamente em repouso, mas eu estava com a perna engessada e andando de muleta, e, depois, uma bengala, até sarar. Mas telefonaram da Prefeitura, era um setor da Prefeitura que queria minha opinião a respeito dessa tradução. O vereador apresentou projeto de lei. Aí eu disse: “Me traga aqui o material, porque eu não posso sair de casa. Quando estiver pronto o parecer, eu aviso.” E foi muito agradável dar o parecer. Eu fiz um levantamento de brasões de armas de países e de alguns municípios, mostrando que o latim é usado normalmente em todos os países e aqui no Brasil também e ninguém cuidou de mudar a divisa, porque o latim é desconhecido. Ele dizia: “Tem que se descer ao povo.” Tem que descer ao povo coisa nenhuma, dá a impressão que o povo está lá embaixo! O negócio é fazer com que ele aprenda! É levantar e não descer!! Inclusive, há países muito humildes, cujos municípios tinham divisas em latim. Pelo visto, eles apresentaram lá, não sei o que fizeram, mas o projeto foi para a “cesta” sessão (risos).

Gabriel - O sr. escreveu cerca de quantos artigos da sua especialidade? 

Escobar - Volta e meia quando me pedem eu escrevo.

Gabriel - Quais são as obras que o sr. mais consulta na área?

Escobar - Obras francesas, inglesas, principalmente.

Gabriel - A bibliografia brasileira é escassa?

Escobar - Escassa e não é confiável, com exceção de um ou dois livros, que considero bons mas ultrapassados. É um livro sobre brasões de armas municipais brasileiros...

Um é o “Brasões e Bandeiras do Brasil”. O outro não é ultrapassado, por que não muda, é a “Simbologia Heráldica”, do Coronel Salvador de Moya. Muito bom. Os outros...Inclusive, há um aí, um cidadão que até fiquei conhecendo, que escreveu um livro chamado “Tratado de Heráldica”. Eu comprei o livro, fui ler, tinha uns erros palmares...estou desaprendendo quando eu estou lendo esses livros...

Gabriel - Quanto anos o sr. ficou servindo no Palácio do governador?

Escobar - 27 anos.

Gabriel - No tempo do Adhemar de Barros, o sr. chegou a servir?

Escobar - No último, quando ele foi cassado. Eu estava lá...

 

[continua...]